sexta-feira, 30 de dezembro de 2011

A mudança da lua

Maria da Graça sentiu os primeiros sintomas do parto no início daquela manhã de domingo. Gritou pelo marido, mas não obteve resposta. João Antônio, como de costume, saíra cedo para o campo logo após a ordenha e de ter tratado as galinhas.
Era o fim do inverno e os dias estavam cada vez mais longos. Mas o frio ainda insistia em continuar. As primeiras flores do velho ipê só esperavam os dias gelados irem embora de vez para apontar e anunciar a primavera que não tardaria em chegar.
As novas folhas das outras árvores do quintal que iam despontando queimaram-se todas pelas geadas dos últimos dias. Outros brotos surgiam e, logo, logo, cobririam de verde os galhos secos e cinzentos. Todavia outra geada vinha e queimava tudo novamente. Mas os dias, cada vez mais quentes, eram sucedidos pelas noites frias e geladas. Era a primavera que principiava anunciando toda a sua força.
João Antônio, que nos últimos dias andava preocupado com o estado da mulher, voltou mais cedo do campo naquele domingo. Fora apenas dar uma olhada em algumas vacas do coronel Osório que estavam para dar cria. Lá pelas dez e meia da manhã, voltou.
Ao entrar no rancho, encontrou a mulher estendida na cama, abanando-se toda. As dores do ventre faziam-na contorcer o corpo. O líquido da bolsa que estourara escorria-lhe por entre as pernas. “É, a coisa é pra hoje mesmo...”, pensou João Antônio tentando não perder a calma.
“A lua mudou e a brasina velha também já criou...”, comparou a gravidez da mulher com a prenhez das vacas. Nesse momento, João Antônio, que ainda tentava manter a calma, agitou-se de tal forma que não atinava o que fazer. A mulher, à sua frente, contorcendo-se de dor, gritava “Acuda, homem, por amor de Deus!”.

sexta-feira, 16 de dezembro de 2011

O dia de domingo


João Antônio levantou-se. No ato, sentiu uma fisgada na coluna. Com ambas as mãos postas em suas costas, ensaiou um alongamento meio que por impulso. “Também, dormi nesse cepo mais duro que trote de petiço manco, bem feito!” – esconjurou-se por ter passado parte da noite na cozinha. Caminhou na direção do quarto. A casa está ainda escura, pois o sol ainda tardaria a apontar no horizonte. Aproximou-se da porta do quarto com receio. Um medo de se deparar com uma nova vida ali e de ser pai o afligiu. Com a chegada da criança, as responsabilidades aumentam consideravelmente.
Espiou o interior do aposento e fez meia-volta. Reforçou o fogo, acrescentando alguns pedaços de lenha. Encheu a chaleira de água e a pôs para esquentar. Em seguida, fechou a portinhola e saiu. Lá fora, a neblina começava a se dissipar e o domingo prometia um dia bonito de céu azul. Uma brisa gelada soprava insistentemente. Campeão o aguardava do lado de fora. “Buenas, amigo veio, dormiu bem? Pois eu varei a noite...” – não perdia nunca essa mania de falar com cão e com outros animais. Ao terminar de falar, bocejou, soltando um grito gutural – “Êta, sono veio dos infernos!” – e dirigiu-se ao galpão contíguo a casa.
Como atrasou um pouco a ordenha, a vaca brasina já o aguardava na entrada do galpão e, volta e meia, mugia impacientemente. “Calma, Brasina veia! Para lá que já te tiro o leite”. Abriu a porteira e a vaca entrou com seu passo bovino e preguiçoso. O bezerro berrava obstinadamente. “Encosta!” – dizia João para que a vaca se posicionasse no lugar habitual da ordenha ao lado da estrebaria aonde dormira o vitelo. João Antônio abriu o portão da estrebaria para que o bezerro mamasse um pouco. Apojou e depois amarrou o boizinho próximo à cabeça da mãe, que mugia como se dissesse “Vem cá, meu filho!” e foi até o rancho passar o café. “Hoje vou tomar o camargo da Brasina.”
Alguns minutos depois, estava de volta ao galpão, com a chocolateira e outros petrechos. Ordenhou e no final, bebeu o camargo, soltando, e seguida, a vaca com sua cria no potreiro. Tratou das galinhas e foi buscar água para os serviços caseiros no córrego aos fundos do rancho, distante apenas alguns metros. De volta a casa, preparou tudo como de costume e saiu pro campo. O domingo prometia novidades para aquele cafundó e João Antônio parou por um instante em frente à casa e olhou para trás, fechando o semblante – “Acho que de hoje não passa” – e continuou o seu caminho.

sexta-feira, 9 de dezembro de 2011

Uma pergunta


No forro da casa, o gambá move-se de um lado a outro causando um barulho surdo. “Tenho de dá um jeito nesse desgracido” – pensou João Antônio enquanto reforça o fogo com uns pedaços de lenha seca. Depois, sentou-se no cepo ao canto da cozinha e fecha os olhos. Está visivelmente cansado pela noite mal dormida. Maria da Graça também dormiu um sono agitado. “A coisa é capaz de ser pra hoje...” – refletiu. E enquanto o pensamento o ia levando pelos meandros da memória, pelas vias das lembranças de coisas que aconteceram nos últimos dias, cochilou.
Súbito acordou, meio que assustado. Ficou alguns instantes com um ar palerma. De repente, lembrou-se do feijão e do leite que havia posto sobre a chapa. Por pouco o leite não derramou. Estava já borbulhando nas bordas da velha vasilha amassada pelo uso e pelo tempo. Verteu-o numa caneca. O feijão, comeu ali mesmo na panela, arranhando com a colher o fundo do recipiente. O calor do alimento o deixou reconfortado. “É bom ter algo quente no estômago” – pensou – “eu tava era com fome”. Bebeu em seguida a caneca do leite já morno.
Dentro de pouco tempo, seu corpo cambou para o lado da parede. Fechou os olhos e adormeceu novamente. Pouco depois, acordou com o canto esganiçado do galo anunciando a aurora que não tardará a chegar. João Antônio abriu os olhos e, a princípio, não compreendeu nada. Uma sensação de estranhamento o dominou. Está habituado a acordar sempre no mesmo quarto, com as mesmas paredes, a mesma cama, a mesma mulher a ressonar a seu lado.
Olhou desconfiado para o lado e não viu nada disso. O que viu foi uma caixa de lenha, o fogão. Recobrou a consciência. Lembrou-se que acabou dormitando na cozinha. Esfregou os olhos, bocejou, ajeitou-se no cepo e respirou fundo. O ar renovou-lhe o ânimo e o discernimento das coisas. Permaneceu sentado mais alguns instantes. De chofre veio-lhe à memória a lembrança da mulher. “Será que já nasceu?”, perguntou-se em silêncio.

sexta-feira, 2 de dezembro de 2011

Uma distração


João Antônio sentiu um calafrio percorrer-lhe o corpo. Esfregou as mãos uma na outra para espantar o frio e depois, como se desse um abraço a si próprio, esfregou os braços. “Tá fria!”, murmurou. Dirigiu-se para a cozinha. Sentia fome. A ansiedade roubou-lhe o sono causando-lhe o apetite. O interior da casa estava escuro. Somente um ou outro raio da luz do luar penetrava pelas frinchas das paredes e das janelas.
Abriu a veneziana da janela da cozinha para que a lua iluminasse o interior da casa com sua luz diáfana. Procurou, naquele lusco-fusco, o pedaço de pão de milho que restara do café, mas a mulher já o havia comido pouco antes de se deitar. Restou-lhe beber um copo de leite que estava, juntamente com a panela com o resto do feijão ressequido, sobre a chapa do fogão, frio como aquela madrugada.
Suas mãos tremiam. Não sabia se por causa do frio ou do nervosismo. Mal tem dinheiro para a comida dele e da mulher e, agora, mais uma boca para alimentar e um corpo para vestir. Por sorte, sempre há algum animal para se caçar para matar a fome. João é um bom caçador, mas o coronel Osório proibiu a caça em suas terras. “Ai daquele que eu pegar caçando em minhas terras!”, disse um dia o coronel. Vez por outra João embrenha-se no mato a procura de alguma caça: um tatu, uma perdiz, um veado ou uma lebre.
Acendeu o lampião. Abriu a portinhola do fogão e ajeitou uns gravetos e um pequeno pedaço de grimpa dentro do fogão. Riscou um fósforo e a chama do pequeno palito iluminou-lhe a mão e a cara. Assoprou de modo a não apagar o fogo. Com o sopro, uma nuvem de cinzas subiu, engasgando-o. Tossiu. Permaneceu calado a ouvir o silêncio e os estalidos do fogo queimando as grimpas para não incomodar a mulher, que solta, de quando em vez, uns gemidos do aposento contíguo. Logo, o silêncio reina absoluto.
A flama aqueceu-lhe o rosto e as mãos. Por pouco não se deixou queimar. Distraiu-se com os ruídos da mulher e do silêncio da noite.

sexta-feira, 25 de novembro de 2011

A noite alva


Aquela noite de sábado para domingo foi longa e fria. Um vento constante assoviava lá fora fazendo com que os galhos do velho ipê batessem nas paredes da casa. No céu, cheio de estrelas, as poucas nuvens passavam ligeiras e a lua boiava solene e tranquila por sobre elas. João Antônio dormiu um sono salpicado.
Ao seu lado, Maria Valéria, volta e meia, gemia e ajeitava-se na cama dura de colchão de palha. A preocupação com o estado da mulher naquele fim de gestação afligia João e roubava-lhe o sono. Levantou-se e permaneceu de pé por alguns segundos balançando-se como se estivesse embriagado. Estava ainda zonzo do sono mal dormido. Mal conseguiu pregar o olho. Estava ali agora plantado feito uma árvore em plena ventania. Oscilava de um lado a outro como um pêndulo de um velho relógio desregulado.
Lá fora, o minuano recrudescia. E era como se balançasse o homem aqui dentro da casa. O vento parecia também embalar o sono de Maria Valéria. A mulher, coitada, com seu ventre pronunciado, remexia-se na cama como que assombrada por um sonho ruim. “E esse vento desgramado que não pára”, pensou João agora que acordou de vez, “Até parece coisa d’outro mundo. É bem como diz o padrinho Guinas: noite de vento, noite dos mortos”.
De repente, o vento amainou. O silêncio agora era quase completo no interior desse rancho perdido por esses confins dos campos de cima da serra. João Antônio respirou fundo e recobrou a consciência. Dirigiu-se à janela. Espiou a lua pela fresta da veneziana. “Deve de ser por volta da meia-noite”, pensou, “a lua já vai alta”.
Lá fora, não havia mais vento. Os galhos do ipê não mais se moviam. Já não batiam contra as paredes da casa. A mulher voltara a dormir, tranquila. A geada, que já branquejava o pasto, deixava o campo em derredor parecendo coberto de prata, brilhante. A lua clareava tudo, até parecia que a aurora estava por nascer, alva como a luz de uma manhã fria de inverno.
“É, acho que agora já posso voltar a dormir...”

sexta-feira, 18 de novembro de 2011

Revirando os pensamentos


João Antônio pôs-se a reavivar a brasa com um graveto. Reforçou o fogo com dois pedaços de lenha. Sentou-se à mesa onde o esperava um pedaço de pão de milho que a mulher havia preparado há uns três dias. O homem comeu, absorto, o seu pedaço de pão.
“Vou enjambrar um berço com uns pedaços de pau que têm lá no galpão...”
“Ah, é boa mesmo... pois eu acho que não passa de já-hoje... tô com uns embrulhos aqui assim, ó”, disse Maria da Graça indicando com a mão o ventre pronunciado.
João Antônio fecha o semblante e sai para a noite escura em direção ao galpão, cabisbaixo. A preocupação o aflige. O cachorro Campeão permanece deitado na soleira da porta. Segue o dono com os olhos. Solta um suspiro profundo e volta a cochilar. João esforça-se para enxergar, mas o lusco-fusco vai ficando cada vez mais escuro até o breu ser total. No galpão, dirige-se à parede onde está o coto de vela. Acende-o. As sombras aumentam e diminuem com a chama incerta. Procura no monte de lenha alguns pedaços de madeira para a construção do berço.
João revira o monte de lenha e depara-se com um cocho velho prestes a virar lenha. O cocho fora feito escavado em um tronco de uma araucária centenária. Ao avistá-lo, seus olhos brilham. “É esse mesmo! Vou lavar bem esse cocho e improvisar uma cama pro neném”, pensou.
Retira o cocho do monte e analisa-o com mais cuidado. “Se cavocar um pouquinho aqui e ali, fica especial”, diz em voz alta coçando a cabeça.
Vai até o outro lado do galpão. Volta com o carrinho de mão. Agarra o cocho com suas mãos fortes e rudes de lavrador. Ergue-o. Depõem o cocho no carrinho. “Vou deixar pra amanhã. Já tá muito tarde e tá um frio desgramado”.
Apaga a vela e volta para casa. Entra e vê Maria da Graça com a mão no ventre e respirando com dificuldade. “É... acho que a encrenca não passa de já-hoje mesmo”, resmunga para si mesmo e senta-se no cepo junto ao fogão e fica revirando a brasa e os seus pensamentos.

sexta-feira, 11 de novembro de 2011

Sentimento de abandono

João Antônio voltou ao trabalho no campo. No caminho, ia pensando na mulher e em construir ou improvisar um berço para a criança que estava por nascer. Ainda não sabia se seria guri ou uma menina. Trabalhou o resto da tarde, juntou suas ferramentas e se preparou para regressar a casa.
Enquanto o dono roçava o campo, Campeão permaneceu deitado sob a sombra da grande timbaúva. Assim que o João Antônio começou a guardar as ferramentas em um abrigo no vão do tronco da árvore, o cão já se postou de pé e se pôs em estado de ansiedade. Queria ir para casa. E lá se foi o homem seguido por seu cão, assim como todo amigo leal e companheiro, sempre o acompanhava de perto.
Chegou ao rancho pouco antes do pôr-do-sol. O frio daquele fim de tarde era de rachar. Entrou e encontrou a mulher sentada na penumbra do aposento, cosendo uma roupa de criança ao redor do fogão à lenha. Maria da Graça soltou um suspiro e disse, “Já voltou, é? Como é que foi lá pros campos de já-hoje? Tudo na santa paz?”.
Ele respondeu apenas com grunhido, sem vontade. João Antônio é um homem de poucas palavras. Mas um tempo depois, falou, “Fui lá na casa do padrinho Guinas de já-hoje...”
A mulher interrompeu o bordado e ergueu a cabeça, esperando o resto do relato.
“Amanhã ou depois ele disse que bate aqui por casa...”.
“Graças a Deus Nosso Senhor mais a Virgem Nossa Senhora!”, disse Maria da Graça benzendo-se toda. “Deus abençoe e guarde o compadre Guinas.” Ficou um instante em silêncio como se uma desilusão tivesse enchido o seu semblante, como um sentimento de abandono, “E cadê a mãe, que até agora não deu o ar da graça... e nós aqui nesse cafundó onde o Judas perdeu as botas... até parece que se esqueceu da gente... Cruz credo!”.

sexta-feira, 4 de novembro de 2011

Chimarreando



Tio Guinas levanta-se e dirige-se até o fogão à lenha pegar a chaleira, onde a água ferve. Enche a cuia e ajeita a bomba da melhor maneira. “E le digo mais, meu afilhado, se não nasceu na mudança da lua, então vai ser só pra depois que mudar de novo pra lua nova, daqui uns dois ou três dias...”
Tio Guinas fala de Maria da Graça, mulher de João Antônio, que está prestes a ganhar o primeiro filho. Enquanto isso, o rapaz se ajeita num canto do aposento para preparar o seu cigarro de palha.
Depois de um longo tempo de silêncio entrecortado pelos chupões que o velho dá na bomba do mate. João Antônio nada fala. Pita o seu palheiro em silêncio, soltando a fumarada com longos suspiros. Está visivelmente apreensivo. “Tá bom... quando o senhor puder ir, é só ir...”.
Tio Guinas nem ouve o que outro fala. Está entretido com o seu chimarrão. Chupa o líquido quente, que faz pelar a língua, e manuseia a bomba, ajeitando-a de modo que a cuia não entupa com a erva. “Iiihhaa”, solta um grito eufórico e fala ainda em voz alta “Roncou a bicha veia!”, e dá uma gaitada, louco de faceiro. Toma a primeira cuia, como é de costume e tradição, e oferece ao afilhado.
João pega a cuia e toma o mate em silêncio. Ao término, entrega-a novamente ao anfitrião. Levanta-se e despede-se do padrinho.
“Deus lhe ajude... tenho de ir... espero que o padrinho apareça lá por casa pra amanhã ou depois... até.”
“Mais tardar pra depois de amanhã eu apareço. Não se apoquente à toa, guri, que esse homem velho aqui é homem de palavra!”
João Antônio sente–se agora um pouco menos incomodado. Olha para o horizonte como se avistasse uma salvação, solta um suspiro longo e diz, “A bênção, padrinho!”
“Deus le abençoe! Deus le guie!”
O cachorro Campeão, que o esperava deitado no limiar do rancho, levanta-se e empina as orelhas logo que o dono diz, “Vamos”. Os dois saem em direção ao horizonte e o velho acompanha-os com os olhos até os perder de vista.

sexta-feira, 28 de outubro de 2011

Chamamento


João Antônio descalça as velhas botas e entra com os pés descalços. A casa não difere muito da sua, apenas mais envelhecida. Dependuradas na parede, somente umas velhas esporas de prata, um arreador com cabo esculpido em madeira fazendo alusão a uma cabeça equina, um chapéu de aba larga, barbicacho, uma imagem da crucificação de Cristo e mais alguns petrechos espalhados pelos pregos.
Tio Guinas estava visivelmente animado com a visita inesperada do afilhado, apesar de já ter uma ideia a respeito do motivo do aparecimento. “Me diga uma cousa, meu filho, já nasceu a criança?, perguntou assim logo de prima, sem rodeios, enquanto punha no fogo a chaleira cheia d’água para preparar o mate.
“Inda não...”, João Antônio falou depois de alguns instantes, com ar de quem está querendo dizer algo, mas não toma coragem.
O silêncio volta a reinar por um tempo no interior do casebre. Apenas o bate-bate que o velho faz nos armários à procura dos ingredientes para preparar o mate amargo.
Súbito João Antônio enche-se de coragem e começa a falar, mesmo que titubeante.
 “Pois é isso mesmo o que me traz aqui... eu... mais a... mulher... queria que o padrinho... desse um ajutório lá em casa... pra a mulher velha... poder ter a criança em paz...
“Mas é pra hoje a encrenca?”
“Tá querendo...”
“Mas bah! Então, assim que o guri do meu compadre chegar, que tá vindo lá das bandas de Lages, eu mando ele de já hoje mesmo lá pra fazenda do coronel Osório... É que eu ia pra lá hoje pra fazer uma lida... mas daí eu mando o guri...”
“Mas não precisa de se incomodar, padrinho...”
João Antônio permanece cabisbaixo como se sua esperança o estivesse abandonado.
“Mas não se desacorçoe homem, assim que o guri chegar, eu me debando lá pra tua casa. Mais tardar amanhã cedo, na barra do dia... Tô louco pra ver a cara do bacuri!”

sexta-feira, 21 de outubro de 2011

No vão da porta


Tio Guinas é homem do campo e sabedor das coisas. Conhece as coisas do tempo e da terra. Nunca frequentou escola. Sabe ler as estrelas, a lua, o sol, o vento, o comportamento dos animais e das pessoas. Tudo o que sabe, aprendeu com a vida, reparando nela.
O velho coronel Francisco, de quem muitos suspeitam que seja filho, foi quem o ensinou algumas letras, mas mal e mal escreve o próprio nome, pois naqueles pagos, o homem do campo não carece de palavras escritas. A palavra oral é a que vale. Um homem de palavra é um homem digno e honrado. Basta não cumprir com o que foi dito para ser desrespeitado socialmente. O velho Aguinaldo Silva sempre foi homem de palavra. Daí o respeito e a admiração de todos.
Apesar da idade avançada, vez por outra ainda monta o seu tordilho, sempre ao raiar do dia, e sai a trote pelas coxilhas e pagos e dirige-se à fazenda Monte Alto, onde é sempre bem-vindo. É uma espécie de conselheiro do coronel Osório, assim como o foi do coronel Francisco.
Apesar de tio Guinas ser padrinho de batismo de João Antônio, ninguém sabe ao certo se existe algum parentesco entre os dois. Faz de tudo e mais um pouco para ajudar o afilhado, mantendo sempre os olhos atentos sobre ele. O que tiver ao seu alcance, tio Guinas faz. E de bom coração.
Ao ver o velho, para no vão da porta, o cachorro Campeão dispara. Tio Guinas permanece pensativo, “Ué... o que será que esses dois tão fazendo pr’essas bandas uma hora dessas? Será que o bacuri nasceu?”. O cão faz festa ao chegar ao amigo. Lambe-lhe as mãos, enrodilha-se todo nas pernas do velho e pula e late e esganiça de felicidade. O velho ri e brinca com o cão, “Êita, cusco velho caborteiro!” -
“Buenas, padrinho!” – grita João enquanto fecha a cancela do portão.
“Buenas! E a afilhada Maria, como vai indo?”
“Boa... E por aqui, como vão as coisas”
 “Por aqui, tudo na Santa Paz, graças a Deus.” – tio Guinas estende a mão e João Antônio pede a bênção.
“Deus le abençoe meu filho!”
E ficam os dois parados no vão da porta num silêncio típico de sítio, cada um olhando para os seus próprios pensamentos e pés.
“Mas se aprochegue, homem” – convida o velho.

sexta-feira, 14 de outubro de 2011

Causos e rumores

Tio Guinas gosta de ficar numa roda de chimarrão com os mais moços e contar os seus causos e lendas da sua vida e da dos outros. Acrescenta sempre algo a mais nas suas narrativas, pois quem conta um conto aumenta um ponto, como se diz por estas bandas. Os ouvintes ouvem com atenção redobrada as histórias dos tempos de outrora. O velho fala pausadamente e com o palavreado típico da região serrana.
Está já com uns setenta e poucos anos, mas a memória ainda guarda intactas as lembranças da infância e da adolescência. Sua mãe era uma índia velha que viveu nas terras do coronel Francisco Fragoso, pai de Osório. Dizem alguns até que tio Guinas era filho legítimo do coronel Francisco. Outros apontam semelhanças entre os dois, Osório e ele. “Os olhos de guri arteiro são iguais aos do coronel”. No entanto, nada é comprovado. Naquele tempo ainda não existiam testes de DNA ou coisas parecidas. A verdade é que Aguinaldo da Silva, o tio Guinas, viveu a sua vida inteira nas terras do coronel Francisco e vive, ainda hoje, sob a proteção do coronel Osório, seu provável irmão.
Tio Guinas faz parte da história da fazenda Monte Alto. Está para ela assim como as taipas que singram as coxilhas e as araucárias que cobrem os campos e invernadas. A querência não é a mesma sem o tio Guinas. Os filhos do coronel Osório, quando chegam à fazenda para passarem as férias, a primeira coisa que fazem é correr para o galpão para ouvir-lhe os causos e anedotas. Adoram o tio Guinas como se este fosse um membro da família. Não sabem eles dos rumores que rondam sobre a suspeita da sua paternidade e do parentesco do velho com o avô dos piás. O coronel Osório não lhes fala nada a respeito, nenhuma só palavra. Decerto temeroso por ter que dividir, entre mais um, a herança dos filhos.

sexta-feira, 7 de outubro de 2011

Tio Guinas


Depois de pouco mais de meia hora de caminhada, avistou ao longe o rancho do tio Guinas. Um fio de fumaça saía pela chaminé do casebre. Sinal de que há gente na morada. A casa, vista assim de longe, parece incorporada à paisagem a sua volta. Já tomou a feição do mato e das árvores em derredor. A madeira, que já sofreu a ação e os efeitos da pátina do tempo, mais parece um tronco de uma grande árvore envelhecida. Assim como a morada de João Antônio, o rancho do tio Guinas também está virado numa tapera. Até dá pena.
O velho vive só naquele ermo. Sua casinhola também é desprovida de luxos, luz elétrica, água encanada, esgoto. Apesar de estarmos em meados dos anos setenta, tio Guinas, do mesmo modo que João Antônio e Maira da Graça, ainda vive como se fosse o início do século XX.
¨
João Antônio e Campeão aproximam-se do sítio. Um cão, que tio Guinas mantém acorrentado por detrás do rancho, latiu insistentemente. Instantes depois, a figura de um velho despontou na soleira da porta. Era o tio Guinas.
Tio Guinas é um caboclo velho trigueiro com sangue de índio botocudo. Quando mais moço, era famoso por suas façanhas nas domas e lidas de gado e de galpão. Não havia potro xucro que tio Guinas não desenganasse. Não temia os perigos da doma. Quando era tempo de vacinação ou marcação do gado, sempre escolhia algum touro ou boi brabo para montar e exibir-se para os outros, que gritavam e assoviavam empolgados pelo feito:
“Mas, ah, quera veio!”, gritavam.
Tio guinas também gosta de contar uns causos. Não perde tempo nem vez para falar das suas andanças e aventuras. Não pode ver uma roda de chimarrão que já se aprochega, assim meio que de revesguelho, como quem não quer nada, aguarda uma brecha ou que alguém lhe passe a palavra, e já vai falando, assim vagarosamente, num jeito sestroso, fazendo com que todos fiquem atentos, prestando atenção. Tio Guinas é como um grande artista. E esse é o seu palco. Esse é o seu grande número.

sexta-feira, 30 de setembro de 2011

No caminho


Com o sol já a pino, João Antônio regressou a casa para o almoço, onde Maria da Graça o esperava, com a barriga, enorme, de quase nove meses, e pronta para rebentar a qualquer momento. O prato do dia é o de quase sempre: feijão-preto com linguiça e um pouco de farinha. Uma mesa farta, apesar das carências de tantas outras coisas, como luz elétrica e água encanada.
João termina de comer, esfrega a manga da camisa na boca e levanta-se para beber um copo d’água para desembuchar e se dirige ao quarto. A mulher faz o mesmo, mas seus movimentos não são tão rudes quanto os do marido, limpa os beiços com o pano de cozinha que sempre carrega em seus ombros.
Pouco tempo depois de tirar a pestana, João Antônio convida o cachorro Campeão para acompanhá-lo. “Vamos Campeão!”, o cão sacode a cola com vigor e entusiasma-se ao ouvir a voz do dono pronunciar a palavra “vamos”, pois sabe que significa alguma viagem ou lida de campo. O homem mal se despede da mulher com um tatear das mãos, que mais parece uma carícia sem sentimento, apenas um roçar frio seguido de um olhar desviado para o chão.
Os dois, cão e homem, seguem o caminho. O cão vai à frente, farejando algo aqui e ali por entre as moitas de vassoura e carqueja. O rancho do tio Guinas fica no outro lado da fazenda, nas encostas do Morro Grande, pouco mais adiante de onde João estivera trabalhando no período da manhã. O céu estava todo azul e o sol abrasava a pele, apesar do fraco vento que ventava intermitentemente.
“É Campeão, o padrinho Guinas vai ficar é mais faceiro que égua de dois potrilhos quando souber que vamos convidar ele pra dá um ajutório lá em casa enquanto a mulher se recupera do parto” – disse essas palavras dirigindo-as ao cão, mas, na verdade, era para dar mais sustança à ideia que tivera enquanto estava na labuta no período da manhã.
E os dois tomaram o rumo direito ao rancho do tio Guinas.

sexta-feira, 23 de setembro de 2011

Sorrindo para si

Ao chegar aos campos da encosta, depois de meia hora de caminhada, João Antônio foi direito à grande timbaúva, onde havia deixado no dia anterior, em uma cavidade do tronco da velha árvore, o machado, a enxada, a foice, a pá e o serrote, para não ter de ficar carregando peso em vão.
Sentou-se ao pé da árvore para descansar um pouco da caminhada e logo depois deu início à longa jornada do dia. O sol, nessa hora, já se mostrava com menos timidez. Decorrido algum tempo, o suor escorreu-lhe pela cara. De quando em quando passa a mão pela testa e descansa um pouco. O trabalho árduo e repetitivo do ir e vir da foice faz com que suas costas doam muito. Pára. Pega a enxada. Arranca alguma raiz teimosa, larga a enxada, pega a foice e recomeça e pára novamente. Descansa um pouco mais. E nessas horas de repouso, pensa no que será de sua vida e na de Maria da Graça com a chegada da criança. Pensa em abandonar tudo, atrelar o carro de boi, carregá-lo com os tarecos e sair com a mulher e a filha. Mudar de lugar e de vida. Mas logo se irrita consigo mesmo, pois nem o carro nem os bois são seus, e, sim, do coronel Osório. Dá um soco no vento como que para espantar a nuvem de pensamentos, acende mais um cigarro e volta ao trabalho.
Mas continua pensando. Não tem dinheiro para comprar coisas. Não sabe ler nem escrever. Mal escreve o próprio nome. Não passa de um escravo nas mãos do coronel. Deve a este tudo o que tem. Apesar disso, o coronel é uma boa pessoa, pois o acolheu em suas terras e lhe deu trabalho, comida e abrigo. João Antônio pensa no coronel e fala com certo orgulho, “Vou convidar o coronel pra ser o padrinho da criança!”. E volta orgulhoso ao trabalho e sorri para seus próprios pensamentos.

sexta-feira, 16 de setembro de 2011

Matutando


João Antônio segue o seu caminho pensando na vida e falando alto consigo mesmo. Seus passos quebram o pasto congelado pela geada. Da sua boca sai um vapor, devido ao intenso frio. Seus pés estão gelados e o vento arde-lhe o rosto e as mãos.
Pára um instante e tira da orelha um crioulo. Acende-o, tapando o fogo com a mão esquerda, que forma uma concha para tapar o vento. Olha para o se companheiro, a cachorro Campeão e dirige-lhe a palavra como se estivesse conversando com uma pessoa.
“É, companheiro, a geada velha foi de quebrar o capim!”
O cão, que vai à frente, pára e olha o dono alçando as orelhas, sinalizando que está ouvindo, mas não compreendendo as palavras. Abana a cola e prossegue o seu caminho.
João Antônio vai matutando coisas sem nexo. Sonha em adquirir um pedaço de terra. Pensa na criança que está por nascer. Lembra-se da mulher. Fala ao cão:
“É, Campeão, vamos aproveitar que estamos por estas bandas e dar uma passada no rancho do padrinho Guina.”
O cão olha para o dono novamente e, como que consentindo, abana o rabo. Conhece a palavra “guina” e sabe que esse som relaciona-se com a pessoa do tio Guina. Campeão gosta muito do padrinho do dono e põe-se ansioso. Mas logo percebe que não será agora que irão ao rancho do amigo. Súbito, abaixa a cola e volta-se ao caminho.
No cabo de alguns segundos, João Antônio fala novamente:
“Tô com um pressentimento de que a coisa é pra hoje mesmo... mais tardar pro fim da semana.”
Esse pensamento exteriorizado refere-se à gravidez da mulher e ao parto que se aproxima.

sexta-feira, 9 de setembro de 2011

O posteiro


O cachorro Campeão segue o dono, que com o seu facão na cintura e a guaiaca a tiracolo, dirige-se para a encosta da invernada grande, nas terras do coronel Osório. Vai arrancar as vassouras secas que tomam conta do campo. Já aproveita para fazer um pouco de lenha.
Esse é um dos serviços que ele presta ao coronel Osório. João Antônio é um dos posteiros da Fazenda Monte Alto. O coronel cedeu o pedaço de terra onde havia antiga tapera do João Maria para que o rapaz construísse o rancho. Em troca disso, tem de cuidar da manutenção das cercas, do gado e ajudar quando nas lidas da fazenda – tosquia das ovelhas, marcação, vacinação, castração, doma, no quintal, na lavoura, na reforma de alguma casa ou galpão, arrancar caraguatás. Enfim, todo tipo de serviço.
Vez por outra, o coronel lhe dá um leitão ou um borrego. João não recebe salário em dinheiro. Só recebe em dinheiro quando a necessidade aperta, quando na compra de algum medicamento ou utensílio de que precise no dia a dia. Tudo o que precisa pede ao coronel. Uma galinha poedeira, um galo novo, uma saca de farinha, um quilo de arroz para comer com o feijão que planta, um pedaço de carne.
A roupa que usa, no mais das vezes, também é doada pelo coronel ou por sua família. Um xale ou um casaco já desbotado e guardado há tempos nos armários e baús do casarão, Maria da Graça recebe-o com muito agrado. Uma bota velha ou um sapato com a sola se despregando, João Antônio a usa, e com muito orgulho.
“O coronel Osório é homem muito bom” – diz.
Mas na verdade, o coronel Osório é quem se beneficia com isto. João Antônio vive com a mulher nas terras do coronel e, em troca disso, paga com o suor do trabalho o arrendamento da terra. No entanto, quando não mais precisar dos serviços prestados por João, o coronel pode, assim no mais, mandá-lo embora, só com a capa da gaita.

sexta-feira, 2 de setembro de 2011

Na hora do café


João Antônio soltou a vaca brasina e a cria no potreiro e dirigiu-se para casa, onde a mulher o esperava com a cara ainda inchada do sono mal dormido. O café recém passado estava posto na velha mesa carcomida pelo tempo e pelo uso. Apesar do incômodo da enorme barriga, Maria da Graça não se entregava à preguiça e dedicava-se aos afazeres caseiros com muito afinco.
“Buenas! Como é que tá o brasininho, já tá firme das pernas?” – perguntou.
“Tá bom” – ele respondeu seco sem muita vontade de falar. E entregando a vasilha do leite para a esposa, “Amanhã podemos tomar o camargo”, e foi se sentar no cepo junto ao fogão.
Na casa, iluminada apenas por um lampião dependurado num dos pregos da parede, não havia luz elétrica. O casal já nem sentia falta das vantagens e do conforto que a eletricidade proporciona. Cada um ficava com os seus pensamentos naquela penumbra. “Tenho que arrumar um berço pra essa criança”, pensava o homem enquanto fumava o seu cigarro de palha. Já a mulher pensava no parto e em chamar alguém para cuidar do rancho por alguns dias.
“Acho que temos que chamar o compadre Guinas pra fazer um ajutório aqui em casa...” – começou Maria da Graça, quebrando mais uma vez o silêncio daquela manhã gelada – “Acho que tá pra rebentar! É capaz de nascer a qualquer hora...”
“Hum!” – resmungou o homem, num misto de concordância e irritação.
“A mulher tem razão, tenho que chamar o padrinho. Tenho muita coisa pra fazer e não tô dando conta” – refletiu enquanto a esposa servia o café e punha um pedaço de pão de milho sobre a mesa.
“Vou ver se falo com o padrinho...” – disse.
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 João Antônio tomou o café e saiu pro campo. Maria da Graça sentou-se na cadeira forrada por um pelego e ficou bordando uma peça de roupa para a criança que esperava.
Lá fora, o minuano varria o céu e o sol espantava o frio. O silêncio era quebrado de quando em quando pelo canto dos pássaros.

sexta-feira, 26 de agosto de 2011

O novo dia anunciado


Na chaleira, em cima do fogão à lenha, a água começa a ferver. João Antônio preparou o chimarrão e sentou-se no cepo junto ao cão, que olhou o dono com um olhar de submissão e suspirou profundamente, como se estivesse em plena paz consigo. Alguns instantes depois, o cão já estava sonhando e soltando gritinhos agudos e ritmados. Parecia lutar contra algum preá ou tatu que costuma caçar quando a fome chega e não há comida no velho coxo escavado em um pedaço de madeira. João Antônio sorriu vendo o cão sonhar enquanto chupava a bomba do chimarrão matinal.
Tomado o amargo, João Antônio fechou a portinhola do fogão para manter o fogo aceso por mais tempo, para facilitar a vida de Maria da Graça, que, ao se levantar, não precise se preocupar com isso. Vestiu o velho pala surrado e saiu. Campeão o acompanhou abanando o rabo. João Antônio iria encerrar a vaca brasina no galpão contíguo à morada para tirar o leite.
Conhecedor dos animais e das coisas da terra, ele sabia exatamente onde procurar a vaca. Estava protegida do vento e do frio no capão próximo ao rancho. Tocou a vaca mansa para o interior do galpão. Riscou um palito de fósforo para acender o coto de vela que fica dentro de uma lata dependurada numa das paredes, e, com uma corda de embira, amarrou a brasina ao palanque da estrebaria, onde o terneiro a esperava berrando ansioso, um pouco pela fome e outro pouco pela saudade de ver a mãe. Maneou os pés da vaca e trouxe-lhe o bezerro para mamar. Fazia dois dias que havia nascido. Era bem desenvolvido e também brasino. João Antônio apojou a vaca e amarrou o terneiro no palanque junto à cabeça da mãe. Começou a ordenha. O ruído rascante do leite caindo na vasilha era o único som que havia no galpão àquela hora do dia.
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Pouco depois, lá fora, o galo cantava o seu cocoricó esganiçado para a alvorada que anunciava o novo dia.

sexta-feira, 19 de agosto de 2011

O alvorecer


João Antônio sentou-se na beira da cama, procurou com os pés tateantes as alpargatas e passou a mão direita pelos cabelos desgrenhados. Olhou de soslaio para o vulto da mulher que ainda ressonava. Suspirou fundo. Estava preocupado com a gravidez da esposa. O nascimento da criança era esperado para aqueles dias do final do inverno. O ventre da futura mãe estava já bem pronunciado.
Era pouco mais de quatro horas da madrugada e o frio intenso lá fora preparava a geada que prometia ser das grandes. O silêncio era quase completo naquele pequeno quarto escuro. De quando em quando era quebrado pela respiração ofegante de Maria da Graça que dormia profundamente.
João Antônio levantou-se e dirigiu-se à janela para averiguar como estava o tempo. Lá fora o vento minuano assoviava e balançava os galhos secos do velho ipê. O campo brilhava ao luar com a geada em formação. Parecia todo coberto de prata.
“Geadona veia das brabas”, disse resmungando para si mesmo e saiu do quarto esfregando as mãos para esquentar os dedos enrijecidos pelo frio.
No outro cômodo da casa, que eram apenas dois, o pequeno quarto e a cozinha, que também servia como sala e despensa, João começou a preparar as coisas para o novo dia que nascia. Juntou uns gravetos e pôs-se a acender o fogo. Pouco tempo depois, a casa iluminou-se com a chama e o calor do fogo que lutava para espantar o frio que entrava pelas frestas das janelas e das paredes do casebre.
João Antônio olhou pela janela da cozinha e viu o cachorro Campeão que dormira enrolado em si mesmo num nicho debaixo da casa. O homem, com pena do animal, resolveu abrir a porta.
“Bamo, Campeão, se aprochegue”, convidou o dono, que fala mais com os animais que com a própria mulher. O cachorro entrou e dirigiu-se para o seu canto ao lado do fogão.
Lá fora, o vento soprava e o alvorecer branquejava a paisagem invernal.

sexta-feira, 12 de agosto de 2011

Uma resoluçao

Quase todos os dias, João Antônio cata gravetos e grimpas no capão de trás da sede da fazenda Monte Alto para facilitar a vida de Maria da Graça. O rapaz dedica-se totalmente à moça. Faz isso por amor e afeto.
Os dois quase nunca trocam palavras entre si. Apenas alguns olhares furtivos e de soslaio. Uns sorrisos acanhados e sem motivo aparente, o que os outros acham estranho. Seu Juca, o pai de Maria da Graça, acha esse comportamento dos namorados muito engraçado. “Esses dois até parece que são é meio fraco das ideias!”, diz o velho achando graça, pois sabe que é coisa de gente moça esse negócio de andar com a cabeça nas nuvens.
Quanto ao rapaz, seu Juca tem uma teoria formada. “São essas lendas e causos que o tio Guinas vive contando pra esse guri. Essas coisas de fantasia e de invenção que o velho inventa... Fica é colocando caraminholas na cabeça do guri”.
Já a mãe de Maria da Graça, dona Anunciata, diz que “os dois tão ‘percisando’ é de tomar jeito”.
Mas dona Anunciata gosta muito de João Antônio, mesmo achando também que ele é “meio avoado”. No entanto, nem o pai nem a mãe sabem o que se passa na cabeça da filha e do pretendente a genro, mas desconfiam que andam de namorico e que a filha tem muito apresso pelo rapaz.
A verdade é que João Antônio dificilmente conversa com alguém. Fala muito consigo mesmo. Algumas vezes, conversa com a cachorra Coleira, que empina as orelhas e mexe a cabeça de um lado para outro como quem presta atenção redobrada ao interlocutor que lhe dirige as palavras. Na verdade essas palavras proferidas pelo rapaz são direcionadas para si mesmo. Ele usa o diálogo com a cadela para exteriorizar os pensamentos e para dar ordem às ideias que se acumulam em sua cabeça.
¨
Nesse momento João Antônio, que está em frente ao espelho, tomou uma resolução. E enchendo-se de coragem, pensou alto, “Vou lá falar com ela... não posso mais ficar nessa lenga-lenga!”.
E foi.

sexta-feira, 5 de agosto de 2011

Maria da Graça


Maria da Graça está na cozinha preparando a mesa para o café da manhã dos patrões, o cel. Osório e sua família. No fogão à lenha, o fogo está aceso e a chaleira começa a chiar. Enquanto espera a água ferver, prepara a cuia para o mate. Maria da Graça gosta de matear logo nas primeiras horas do dia. Adquiriu o hábito com o seu pai, o seu Juca.
A moça gosta dessa hora da manhã, pois é quando fica só no casarão esperando os patrões acordarem e seu pai, sua mãe ou (quem sabe?) João Antônio voltarem da ordenha com o leite fresco. Vez por outra é o próprio João Antônio quem traz o leite para ela. Mas os dois não trocam muitas palavras entre si. Só alguns olhares acanhados de quando em quando.
Por causa do barulho que faz, Maria da Graça fecha a porta da cozinha que dá acesso aos outros aposentos do casarão e liga o rádio. Nesta hora do dia, a programação da rádio local é de músicas campeiras. Vez por outra, o locutor anuncia a próxima canção, fala dos produtos dos anunciantes, diz a hora certa e fala do tempo com aquela voz grave e pausada de radialista de interior.
“Hora certa: em Santa Cruz da Encruzilhada, seis horas e dezenove minutos. O céu azul promete mais um dia quente na região serrana. No momento: dezesseis graus. Na Rádio Encruzilhada, mais um sucesso d’Os Bertussi, “Oh, de casa!”
A cozinha enche-se ao som dos primeiros acordes da moda. Maria da Graça acompanha a música com sua voz desafinada e sem saber direito os versos da canção. Só o refrão ela canta com mais certeza. Acompanha a moda por instinto, sem se importar se está cantando certo. Mas canta mesmo assim. Gosta de música. Depois que o coronel Osório adquiriu o rádio, não o desliga nunca. Deixa-o ligado praticamente o dia inteiro. Fica sabendo de tudo através da programação. Das novidades, das notícias da região, das festas e até mesmo da política local, mas não compreende muito bem essas coisas todas. Gosta mesmo é de ouvir as músicas e cantar junto aquelas letras que também nem sabe direito o que significam.
“Oh, de casa!... Oh, de casa!...”

sexta-feira, 29 de julho de 2011

O homem do espelho

João Antônio está em frente ao espelho. A imagem que vê é a de um homem sem perspectiva. A imagem de um homem sem posses. Um homem sem uma certeza de futuro. Um homem sem nada.
A barba de uma semana que sombreia seu rosto o faz parecer mais velho do que verdadeiramente é. A imagem que está a sua frente não é a que gostaria de ver. Ou ainda, não é a imagem que gostaria que os outros o vissem, principalmente Maria da Graça.
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Ali está João Antônio, despido de tudo o que há de orgulho ou pretensão. Não há sinal de arrogância ou cobiça nesse ser que está vendo a si mesmo, puro como se tivesse nascido nesse mesmo instante. Ali está um homem imaculado, sem rancores ou raivas. Um homem sem pensamentos impuros ou impróprios. Não há um julgamento sequer neste homem que aqui está, na frente deste velho espelho que já serviu de confessor e amigo para muita gente desses confins do planalto serrano, despido de tudo o que de há de ruim ou pecaminoso, que transpasse a sua condição de ser humano.
É como se João Antônio fosse um homem despido de humanidade. Ou em palavras mais justas e exatas, despido de toda a Maldade mundana e humana, pois tudo o que pertence ao homem, ao ser humano, está repleto de maldade e pleno de pecado.
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O homem que está agora em frente ao espelho é um homem simples. Ignorante das coisas supérfluas. Não é capaz de um pensamento mais ousado. Um pensamento que alcance algo impensado ou complexo.
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O homem que se vê a si mesmo não sabe das coisas impalpáveis. No entanto, esse homem rude e simples que aqui está, parado como uma pedra, observando a imagem que o espelho lhe apresenta, tem certeza de uma coisa que poucos na vida possuem. A certeza de amar uma mulher. Ama-a sem qualquer suspeita de interesse material ou ambição pretensiosa. Ama-a descomprometido. Apenas com a certeza de amá-la e de dedicar a vida e o futuro a ela. Este homem do espelho ama uma mulher. Simplesmente.

sexta-feira, 22 de julho de 2011

João Antônio

A última vaca foi ordenhada e João Antônio vai tomar o seu mate ao lado do seu Juca, pai de Maria da Graça e capataz da fazenda Monte Alto. Senta-se no próprio banquinho da ordenha e acende um crioulo. A cadela Coleira permanece deitada tomando os primeiros raios do sol que, aos poucos, rompem a neblina.
João Antônio olha para o nascente e fica a contemplar a paisagem, mas o que vê mesmo é a sua própria vida. Pensa em tirar Maria da Graça dali e ir morar com ela em algum rancho. Mas esse pensamento o irrita. Não existe tal rancho, pelo menos não que seja dele. Apenas aquele velho casebre abandonado nos fundos da invernada grande que servia de abrigo ao coronel Osório nas suas andanças pelos campos.
Solta uma baforada e as ideias evaporam-se no ar com a fumaça do cigarro. Abaixa a cabeça e olha para si. Suas roupas estão que é um trapo. A calça, toda remendada, mais parece uma colcha de retalhos. Os bicos de ambas as botas estão todos arrebentados. A camisa encardida só presta para a labuta diária. Não é roupa, é apenas um pano velho que o cobre. Passa a mão direita no queixo e sente os pelos da barba de uma semana. O rascar do toque lhe dá uma sensação de desamparo e de relaxamento. “Tenho é que me endireitar! Tomar um banho e raspar esta barba...”.
Vira o rosto para a casa do patrão. A fumaça que sai pela chaminé é a prova de que Maria da Graça está na ativa. Imagina-se entrando casa à dentro e aproximando-se da amada para tomá-la em seus braços e arrancá-la dali. Nesse momento, um bem-te-vi o alerta de que o viu em seu devaneio. “Bem-te-vi... bem-te-vi...”
João Antônio volta à realidade. Balança a cabeça de um lado a outro, cospe no chão e joga o crioulo no barro umedecido da mangueira. Seu Juca, que permanecia calado bombeando a cuia, olha para o pretendente a genro e pensa em voz alta. “Até parece que anda meio avoado das ideia esse rapaz.”
João Antônio nem se dá conta das palavras do velho. Permanece absorto, olhando o nada. Lá fora, as vacas pastam calmosas. “É... o dia vai ser bom”, fala alto, mais para si mesmo do que ao outro.
Precisa levar o leite para a casa dos patrões, e essa é uma oportunidade de ver Maria da Graça e, quem sabe, trocar algumas palavras com ela. A ansiedade o põe em nervos. Todavia lembra-se de como está vestido. Isso o deixa envergonhado e ferido em seu orgulho. Mas sabe, no entanto, que Maria da Graça é da mesma classe social que a sua, mas nem por isso se livra do orgulho que tem de si.
Vai para o seu aposento e tenta dar uma arrumada nos cabelos desgrenhados. Tira a camisa esfarrapada e troca por outra, a domingueira e que só a usa nos domingos ou em ocasiões especiais. Ver Maria da Graça é uma ocasião especial. E João Antônio quer se mostrar bem para ela.

sexta-feira, 15 de julho de 2011

Os guapequinhas

Os guapequinhas estavam mais pra lá do que pra cá. Quando João Antônio começou a tratá-los com o vermífugo, logo eles deram de expelir os vermes. Eram umas coisas compridas e finas. Mais pareciam umas minhocas.
Um dos cinco cachorrinhos infelizmente não agüentou e acabou morrendo. Estava muito debilitado e, por ser o menor da ninhada, os outros não deixavam que ele se chegasse para mamar nas tetas da mãe.
Mas João Antônio estava mesmo preocupado era com o guapevinha mais parecido com Coleira, o que ele decidiu dar o nome de Campeão. O cachorrinho estava também muito debilitado. Se sobrevivesse, seria por milagre.
A bem da verdade, João Antônio pensou que nenhum deles pudesse sobreviver. Mas à medida que os dias iam passando, os quatro guapecas sobreviventes se mostravam cada vez mais fortes.
Por isso é que Maria da Graça teve que dobrar a comida dos cachorros. A porção de polenta sem sal que fazia já não era suficiente. A partir daquele dia, a polenta passou a ser feita num panelão que era usado na cozinha de chão para preparar as morcilhas, linguiças, sabão e outras coisas de fazenda.
Não demorou muito, os filhotes começaram a perambular pelo quintal em frente de casa. Corriam atrás das galinhas e dos marrecos. As ovelhas batiam as patas da frente com força no chão e avançavam sobre os filhotes, que de medo e falta de experiência das lidas campeiras, corriam esganiçando desesperadamente.
Era bonito de se ver. Aquela brincadeira de correr atrás das ovelhas e de outros animais de criação, na verdade, era como uma espécie de exercício para as fainas futuras. “Esse Campeão vai ser bom de lida!”, dizia João Antônio, “Olhe só o jeito que ele se agacha pra dar o bote!”
Quando era tempo de lidar com o gado, os cachorrinhos observavam, do cercado da sede, a mãe e os outros cachorros da fazenda arrebanhando a tropa, pois não se atreviam a ultrapassar esse limite de segurança.
Mas logo, logo será a vez dos filhotes de lidar e campear o gado pelos campos e canhadas.

sexta-feira, 8 de julho de 2011

Campeão

A ninhada, por pouco, não vinga. Se não fosse por Coleira, todos os guaipequinhas tinham morrido. Coleira foi tão zelosa no cuidado dos filhotes, que os escondeu por quase duas semanas sem que ninguém pudesse descobrir aonde foi que ela havia dado à luz àquela ninhada toda. Por sorte, Coleira, quando percebeu que seus filhotes estavam em maus lençóis, pediu logo ajuda ao dono. “Até parece gente esse bicho”, dizia o dono.
João Antônio lidou para saber onde era o esconderijo da cadela, mas não teve jeito, pois não se ouvia ganidos nem sinais dos guapequinhas e os serviços na fazenda eram demasiados para poder ficar de folga assim no mais à procura de cachorros recém-nascidos.
Eram cinco filhotes. Todos parecidos e de pelagem tigrada. Exceto um, que trazia a pelagem da mãe. O fato de quatro cachorros serem do mesmo tipo de pelo, dava a certeza de quem era o pai, um cachorro graúdo da fazenda vizinha. Esse cão também trazia a pelagem mosqueada, de um marrom-acinzentado. Parecido com um cão pastor.
Já a mãe, Coleira, recebeu esse nome por causa da pelagem branca que envolve o pescoço, tomando a forma de uma gargalheira. Essa coleira se estende à barriga e às quatro patas. O restante do corpo tem a pelagem amarelo-ovo. Os pelos são duros e curtos, assim como os do cão da fazenda vizinha. Coleira é de médio porte. A raça, indefinida, com laivos de pointer, porém menor, misturado com algum terrier desenxabido.
Quando Coleira mostrou a João Antônio o esconderijo da ninhada, os filhotinhos estavam com suas vidas por um triz. “Se eu demorasse mais um dia pra achar a toca, acho que nenhum sobrevivia...”, disse o homem para a sua mulher, Maria da Graça.
Desde o instante em que João Antônio salvou os guapequinhas, já escolheu um como seu predileto. E era justamente aquele parecido com a Coleira. “Acho que vou querer ficar com esse daqui. Gostei mais desse guapevinha por causa que ele é o mais acabrunhado de todos.” O homem ficou um momento calado, pensando, e disse assim como quem fala pra si próprio: “Se ele sobreviver, o nome dele vai ser Campeão.”

sexta-feira, 1 de julho de 2011

Coleira

A cadela Coleira está prenhe. A pança, enorme. “Acho que a Coleira vai dar cria... De hoje não passa.” – sentenciou João Antônio pra mulher na hora do café. E continuou: “A lua tá pra mudar e ela anda meio estranha, se escondendo, se entocando por aí...” Maria da Graça apenas escutava enquanto punha lenha no fogão. “Quando eu tava tirando leite, ela começou andar de um lado pro outro, que nem uma tonta...”.
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Na hora da ordenha, a cachorra Coleira mostrou-se estonteada. Andava pra lá e pra cá sem se decidir onde ficar. Percorria o quintal detrás da casa. Andava pros lados do galinheiro, voltava ao quintal, descia pros lados do chiqueiro, vinha de volta ao galinheiro, cruzava a cerca em direção ao galpão, transpunha as estrebarias, retrocedia ao quintal, passava pela frente da casa, farejava, cheirava, procurava um lugar, um esconderijo, uma alcova, uma cova, um lugar para se entocar, uma toca.
Pouco antes do almoço, João Antônio percebeu que Coleira sumira. “Onde será que se meteu essa cachorra desgramada? Agora vai ter essa cachorrada sabe-se lá aonde...”.
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Passaram-se dias e Coleira só aparecia para mal e mal comer as sobras das refeições dos donos e a polenta sem sal feita para os cães e já se escafedia novamente. Coleira ia secando mais e mais a cada dia. Estava que era só carne e osso a coitada.
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Certo dia, Coleira olhou o dono e deu de latir e abanar o rabo e rodopiar ameaçando sair correndo. “O que será que essa cachorra quer? Deve de ter alguma coisa errada com os guaipecas...” A cadela queria que ele a seguisse. “Vamos...”. Coleira dirigiu-se aos fundos do galpão e penetrou numa fresta que dava acesso à parte debaixo da construção. Ali era o ninho. Ali estava a ninhada.
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João Antônio meteu a cara pela fresta. Ouviu uns ganidos surdos. Quando seus olhos se acostumaram com o escuro da furna, avistou dois olhinhos brilhando como farois. Eram os olhos de Coleira. Os filhotes já se locomoviam, mas não eram capazes de subir o degrau da entrada da toca. “E agora, como é que vamos tirar esses bichos daí de baixo?”.
João Antônio teve que remover alguns tijolos para poder retirar os filhotes do buraco. Estavam muito debilitados, cheios de vermes e empestados de pulgas. Levou-os para um lugar mais arejado. Por sorte, havia vermicida na fazenda. Deu aos guaipequinhas, que, não demorando muito, começaram a expelir os vermes.
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Depois do serviço feito, João Antônio comentou, todo orgulhoso, com Maria da Graça, “Esses bichos só faltam falar, se não fosse pela Coleira, acho que os guaipequinhas estariam todos mortos em pouco tempo”.