sexta-feira, 25 de novembro de 2011

A noite alva


Aquela noite de sábado para domingo foi longa e fria. Um vento constante assoviava lá fora fazendo com que os galhos do velho ipê batessem nas paredes da casa. No céu, cheio de estrelas, as poucas nuvens passavam ligeiras e a lua boiava solene e tranquila por sobre elas. João Antônio dormiu um sono salpicado.
Ao seu lado, Maria Valéria, volta e meia, gemia e ajeitava-se na cama dura de colchão de palha. A preocupação com o estado da mulher naquele fim de gestação afligia João e roubava-lhe o sono. Levantou-se e permaneceu de pé por alguns segundos balançando-se como se estivesse embriagado. Estava ainda zonzo do sono mal dormido. Mal conseguiu pregar o olho. Estava ali agora plantado feito uma árvore em plena ventania. Oscilava de um lado a outro como um pêndulo de um velho relógio desregulado.
Lá fora, o minuano recrudescia. E era como se balançasse o homem aqui dentro da casa. O vento parecia também embalar o sono de Maria Valéria. A mulher, coitada, com seu ventre pronunciado, remexia-se na cama como que assombrada por um sonho ruim. “E esse vento desgramado que não pára”, pensou João agora que acordou de vez, “Até parece coisa d’outro mundo. É bem como diz o padrinho Guinas: noite de vento, noite dos mortos”.
De repente, o vento amainou. O silêncio agora era quase completo no interior desse rancho perdido por esses confins dos campos de cima da serra. João Antônio respirou fundo e recobrou a consciência. Dirigiu-se à janela. Espiou a lua pela fresta da veneziana. “Deve de ser por volta da meia-noite”, pensou, “a lua já vai alta”.
Lá fora, não havia mais vento. Os galhos do ipê não mais se moviam. Já não batiam contra as paredes da casa. A mulher voltara a dormir, tranquila. A geada, que já branquejava o pasto, deixava o campo em derredor parecendo coberto de prata, brilhante. A lua clareava tudo, até parecia que a aurora estava por nascer, alva como a luz de uma manhã fria de inverno.
“É, acho que agora já posso voltar a dormir...”

sexta-feira, 18 de novembro de 2011

Revirando os pensamentos


João Antônio pôs-se a reavivar a brasa com um graveto. Reforçou o fogo com dois pedaços de lenha. Sentou-se à mesa onde o esperava um pedaço de pão de milho que a mulher havia preparado há uns três dias. O homem comeu, absorto, o seu pedaço de pão.
“Vou enjambrar um berço com uns pedaços de pau que têm lá no galpão...”
“Ah, é boa mesmo... pois eu acho que não passa de já-hoje... tô com uns embrulhos aqui assim, ó”, disse Maria da Graça indicando com a mão o ventre pronunciado.
João Antônio fecha o semblante e sai para a noite escura em direção ao galpão, cabisbaixo. A preocupação o aflige. O cachorro Campeão permanece deitado na soleira da porta. Segue o dono com os olhos. Solta um suspiro profundo e volta a cochilar. João esforça-se para enxergar, mas o lusco-fusco vai ficando cada vez mais escuro até o breu ser total. No galpão, dirige-se à parede onde está o coto de vela. Acende-o. As sombras aumentam e diminuem com a chama incerta. Procura no monte de lenha alguns pedaços de madeira para a construção do berço.
João revira o monte de lenha e depara-se com um cocho velho prestes a virar lenha. O cocho fora feito escavado em um tronco de uma araucária centenária. Ao avistá-lo, seus olhos brilham. “É esse mesmo! Vou lavar bem esse cocho e improvisar uma cama pro neném”, pensou.
Retira o cocho do monte e analisa-o com mais cuidado. “Se cavocar um pouquinho aqui e ali, fica especial”, diz em voz alta coçando a cabeça.
Vai até o outro lado do galpão. Volta com o carrinho de mão. Agarra o cocho com suas mãos fortes e rudes de lavrador. Ergue-o. Depõem o cocho no carrinho. “Vou deixar pra amanhã. Já tá muito tarde e tá um frio desgramado”.
Apaga a vela e volta para casa. Entra e vê Maria da Graça com a mão no ventre e respirando com dificuldade. “É... acho que a encrenca não passa de já-hoje mesmo”, resmunga para si mesmo e senta-se no cepo junto ao fogão e fica revirando a brasa e os seus pensamentos.

sexta-feira, 11 de novembro de 2011

Sentimento de abandono

João Antônio voltou ao trabalho no campo. No caminho, ia pensando na mulher e em construir ou improvisar um berço para a criança que estava por nascer. Ainda não sabia se seria guri ou uma menina. Trabalhou o resto da tarde, juntou suas ferramentas e se preparou para regressar a casa.
Enquanto o dono roçava o campo, Campeão permaneceu deitado sob a sombra da grande timbaúva. Assim que o João Antônio começou a guardar as ferramentas em um abrigo no vão do tronco da árvore, o cão já se postou de pé e se pôs em estado de ansiedade. Queria ir para casa. E lá se foi o homem seguido por seu cão, assim como todo amigo leal e companheiro, sempre o acompanhava de perto.
Chegou ao rancho pouco antes do pôr-do-sol. O frio daquele fim de tarde era de rachar. Entrou e encontrou a mulher sentada na penumbra do aposento, cosendo uma roupa de criança ao redor do fogão à lenha. Maria da Graça soltou um suspiro e disse, “Já voltou, é? Como é que foi lá pros campos de já-hoje? Tudo na santa paz?”.
Ele respondeu apenas com grunhido, sem vontade. João Antônio é um homem de poucas palavras. Mas um tempo depois, falou, “Fui lá na casa do padrinho Guinas de já-hoje...”
A mulher interrompeu o bordado e ergueu a cabeça, esperando o resto do relato.
“Amanhã ou depois ele disse que bate aqui por casa...”.
“Graças a Deus Nosso Senhor mais a Virgem Nossa Senhora!”, disse Maria da Graça benzendo-se toda. “Deus abençoe e guarde o compadre Guinas.” Ficou um instante em silêncio como se uma desilusão tivesse enchido o seu semblante, como um sentimento de abandono, “E cadê a mãe, que até agora não deu o ar da graça... e nós aqui nesse cafundó onde o Judas perdeu as botas... até parece que se esqueceu da gente... Cruz credo!”.

sexta-feira, 4 de novembro de 2011

Chimarreando



Tio Guinas levanta-se e dirige-se até o fogão à lenha pegar a chaleira, onde a água ferve. Enche a cuia e ajeita a bomba da melhor maneira. “E le digo mais, meu afilhado, se não nasceu na mudança da lua, então vai ser só pra depois que mudar de novo pra lua nova, daqui uns dois ou três dias...”
Tio Guinas fala de Maria da Graça, mulher de João Antônio, que está prestes a ganhar o primeiro filho. Enquanto isso, o rapaz se ajeita num canto do aposento para preparar o seu cigarro de palha.
Depois de um longo tempo de silêncio entrecortado pelos chupões que o velho dá na bomba do mate. João Antônio nada fala. Pita o seu palheiro em silêncio, soltando a fumarada com longos suspiros. Está visivelmente apreensivo. “Tá bom... quando o senhor puder ir, é só ir...”.
Tio Guinas nem ouve o que outro fala. Está entretido com o seu chimarrão. Chupa o líquido quente, que faz pelar a língua, e manuseia a bomba, ajeitando-a de modo que a cuia não entupa com a erva. “Iiihhaa”, solta um grito eufórico e fala ainda em voz alta “Roncou a bicha veia!”, e dá uma gaitada, louco de faceiro. Toma a primeira cuia, como é de costume e tradição, e oferece ao afilhado.
João pega a cuia e toma o mate em silêncio. Ao término, entrega-a novamente ao anfitrião. Levanta-se e despede-se do padrinho.
“Deus lhe ajude... tenho de ir... espero que o padrinho apareça lá por casa pra amanhã ou depois... até.”
“Mais tardar pra depois de amanhã eu apareço. Não se apoquente à toa, guri, que esse homem velho aqui é homem de palavra!”
João Antônio sente–se agora um pouco menos incomodado. Olha para o horizonte como se avistasse uma salvação, solta um suspiro longo e diz, “A bênção, padrinho!”
“Deus le abençoe! Deus le guie!”
O cachorro Campeão, que o esperava deitado no limiar do rancho, levanta-se e empina as orelhas logo que o dono diz, “Vamos”. Os dois saem em direção ao horizonte e o velho acompanha-os com os olhos até os perder de vista.