sexta-feira, 30 de setembro de 2011

No caminho


Com o sol já a pino, João Antônio regressou a casa para o almoço, onde Maria da Graça o esperava, com a barriga, enorme, de quase nove meses, e pronta para rebentar a qualquer momento. O prato do dia é o de quase sempre: feijão-preto com linguiça e um pouco de farinha. Uma mesa farta, apesar das carências de tantas outras coisas, como luz elétrica e água encanada.
João termina de comer, esfrega a manga da camisa na boca e levanta-se para beber um copo d’água para desembuchar e se dirige ao quarto. A mulher faz o mesmo, mas seus movimentos não são tão rudes quanto os do marido, limpa os beiços com o pano de cozinha que sempre carrega em seus ombros.
Pouco tempo depois de tirar a pestana, João Antônio convida o cachorro Campeão para acompanhá-lo. “Vamos Campeão!”, o cão sacode a cola com vigor e entusiasma-se ao ouvir a voz do dono pronunciar a palavra “vamos”, pois sabe que significa alguma viagem ou lida de campo. O homem mal se despede da mulher com um tatear das mãos, que mais parece uma carícia sem sentimento, apenas um roçar frio seguido de um olhar desviado para o chão.
Os dois, cão e homem, seguem o caminho. O cão vai à frente, farejando algo aqui e ali por entre as moitas de vassoura e carqueja. O rancho do tio Guinas fica no outro lado da fazenda, nas encostas do Morro Grande, pouco mais adiante de onde João estivera trabalhando no período da manhã. O céu estava todo azul e o sol abrasava a pele, apesar do fraco vento que ventava intermitentemente.
“É Campeão, o padrinho Guinas vai ficar é mais faceiro que égua de dois potrilhos quando souber que vamos convidar ele pra dá um ajutório lá em casa enquanto a mulher se recupera do parto” – disse essas palavras dirigindo-as ao cão, mas, na verdade, era para dar mais sustança à ideia que tivera enquanto estava na labuta no período da manhã.
E os dois tomaram o rumo direito ao rancho do tio Guinas.

sexta-feira, 23 de setembro de 2011

Sorrindo para si

Ao chegar aos campos da encosta, depois de meia hora de caminhada, João Antônio foi direito à grande timbaúva, onde havia deixado no dia anterior, em uma cavidade do tronco da velha árvore, o machado, a enxada, a foice, a pá e o serrote, para não ter de ficar carregando peso em vão.
Sentou-se ao pé da árvore para descansar um pouco da caminhada e logo depois deu início à longa jornada do dia. O sol, nessa hora, já se mostrava com menos timidez. Decorrido algum tempo, o suor escorreu-lhe pela cara. De quando em quando passa a mão pela testa e descansa um pouco. O trabalho árduo e repetitivo do ir e vir da foice faz com que suas costas doam muito. Pára. Pega a enxada. Arranca alguma raiz teimosa, larga a enxada, pega a foice e recomeça e pára novamente. Descansa um pouco mais. E nessas horas de repouso, pensa no que será de sua vida e na de Maria da Graça com a chegada da criança. Pensa em abandonar tudo, atrelar o carro de boi, carregá-lo com os tarecos e sair com a mulher e a filha. Mudar de lugar e de vida. Mas logo se irrita consigo mesmo, pois nem o carro nem os bois são seus, e, sim, do coronel Osório. Dá um soco no vento como que para espantar a nuvem de pensamentos, acende mais um cigarro e volta ao trabalho.
Mas continua pensando. Não tem dinheiro para comprar coisas. Não sabe ler nem escrever. Mal escreve o próprio nome. Não passa de um escravo nas mãos do coronel. Deve a este tudo o que tem. Apesar disso, o coronel é uma boa pessoa, pois o acolheu em suas terras e lhe deu trabalho, comida e abrigo. João Antônio pensa no coronel e fala com certo orgulho, “Vou convidar o coronel pra ser o padrinho da criança!”. E volta orgulhoso ao trabalho e sorri para seus próprios pensamentos.

sexta-feira, 16 de setembro de 2011

Matutando


João Antônio segue o seu caminho pensando na vida e falando alto consigo mesmo. Seus passos quebram o pasto congelado pela geada. Da sua boca sai um vapor, devido ao intenso frio. Seus pés estão gelados e o vento arde-lhe o rosto e as mãos.
Pára um instante e tira da orelha um crioulo. Acende-o, tapando o fogo com a mão esquerda, que forma uma concha para tapar o vento. Olha para o se companheiro, a cachorro Campeão e dirige-lhe a palavra como se estivesse conversando com uma pessoa.
“É, companheiro, a geada velha foi de quebrar o capim!”
O cão, que vai à frente, pára e olha o dono alçando as orelhas, sinalizando que está ouvindo, mas não compreendendo as palavras. Abana a cola e prossegue o seu caminho.
João Antônio vai matutando coisas sem nexo. Sonha em adquirir um pedaço de terra. Pensa na criança que está por nascer. Lembra-se da mulher. Fala ao cão:
“É, Campeão, vamos aproveitar que estamos por estas bandas e dar uma passada no rancho do padrinho Guina.”
O cão olha para o dono novamente e, como que consentindo, abana o rabo. Conhece a palavra “guina” e sabe que esse som relaciona-se com a pessoa do tio Guina. Campeão gosta muito do padrinho do dono e põe-se ansioso. Mas logo percebe que não será agora que irão ao rancho do amigo. Súbito, abaixa a cola e volta-se ao caminho.
No cabo de alguns segundos, João Antônio fala novamente:
“Tô com um pressentimento de que a coisa é pra hoje mesmo... mais tardar pro fim da semana.”
Esse pensamento exteriorizado refere-se à gravidez da mulher e ao parto que se aproxima.

sexta-feira, 9 de setembro de 2011

O posteiro


O cachorro Campeão segue o dono, que com o seu facão na cintura e a guaiaca a tiracolo, dirige-se para a encosta da invernada grande, nas terras do coronel Osório. Vai arrancar as vassouras secas que tomam conta do campo. Já aproveita para fazer um pouco de lenha.
Esse é um dos serviços que ele presta ao coronel Osório. João Antônio é um dos posteiros da Fazenda Monte Alto. O coronel cedeu o pedaço de terra onde havia antiga tapera do João Maria para que o rapaz construísse o rancho. Em troca disso, tem de cuidar da manutenção das cercas, do gado e ajudar quando nas lidas da fazenda – tosquia das ovelhas, marcação, vacinação, castração, doma, no quintal, na lavoura, na reforma de alguma casa ou galpão, arrancar caraguatás. Enfim, todo tipo de serviço.
Vez por outra, o coronel lhe dá um leitão ou um borrego. João não recebe salário em dinheiro. Só recebe em dinheiro quando a necessidade aperta, quando na compra de algum medicamento ou utensílio de que precise no dia a dia. Tudo o que precisa pede ao coronel. Uma galinha poedeira, um galo novo, uma saca de farinha, um quilo de arroz para comer com o feijão que planta, um pedaço de carne.
A roupa que usa, no mais das vezes, também é doada pelo coronel ou por sua família. Um xale ou um casaco já desbotado e guardado há tempos nos armários e baús do casarão, Maria da Graça recebe-o com muito agrado. Uma bota velha ou um sapato com a sola se despregando, João Antônio a usa, e com muito orgulho.
“O coronel Osório é homem muito bom” – diz.
Mas na verdade, o coronel Osório é quem se beneficia com isto. João Antônio vive com a mulher nas terras do coronel e, em troca disso, paga com o suor do trabalho o arrendamento da terra. No entanto, quando não mais precisar dos serviços prestados por João, o coronel pode, assim no mais, mandá-lo embora, só com a capa da gaita.

sexta-feira, 2 de setembro de 2011

Na hora do café


João Antônio soltou a vaca brasina e a cria no potreiro e dirigiu-se para casa, onde a mulher o esperava com a cara ainda inchada do sono mal dormido. O café recém passado estava posto na velha mesa carcomida pelo tempo e pelo uso. Apesar do incômodo da enorme barriga, Maria da Graça não se entregava à preguiça e dedicava-se aos afazeres caseiros com muito afinco.
“Buenas! Como é que tá o brasininho, já tá firme das pernas?” – perguntou.
“Tá bom” – ele respondeu seco sem muita vontade de falar. E entregando a vasilha do leite para a esposa, “Amanhã podemos tomar o camargo”, e foi se sentar no cepo junto ao fogão.
Na casa, iluminada apenas por um lampião dependurado num dos pregos da parede, não havia luz elétrica. O casal já nem sentia falta das vantagens e do conforto que a eletricidade proporciona. Cada um ficava com os seus pensamentos naquela penumbra. “Tenho que arrumar um berço pra essa criança”, pensava o homem enquanto fumava o seu cigarro de palha. Já a mulher pensava no parto e em chamar alguém para cuidar do rancho por alguns dias.
“Acho que temos que chamar o compadre Guinas pra fazer um ajutório aqui em casa...” – começou Maria da Graça, quebrando mais uma vez o silêncio daquela manhã gelada – “Acho que tá pra rebentar! É capaz de nascer a qualquer hora...”
“Hum!” – resmungou o homem, num misto de concordância e irritação.
“A mulher tem razão, tenho que chamar o padrinho. Tenho muita coisa pra fazer e não tô dando conta” – refletiu enquanto a esposa servia o café e punha um pedaço de pão de milho sobre a mesa.
“Vou ver se falo com o padrinho...” – disse.
¨
 João Antônio tomou o café e saiu pro campo. Maria da Graça sentou-se na cadeira forrada por um pelego e ficou bordando uma peça de roupa para a criança que esperava.
Lá fora, o minuano varria o céu e o sol espantava o frio. O silêncio era quebrado de quando em quando pelo canto dos pássaros.