sexta-feira, 26 de agosto de 2011

O novo dia anunciado


Na chaleira, em cima do fogão à lenha, a água começa a ferver. João Antônio preparou o chimarrão e sentou-se no cepo junto ao cão, que olhou o dono com um olhar de submissão e suspirou profundamente, como se estivesse em plena paz consigo. Alguns instantes depois, o cão já estava sonhando e soltando gritinhos agudos e ritmados. Parecia lutar contra algum preá ou tatu que costuma caçar quando a fome chega e não há comida no velho coxo escavado em um pedaço de madeira. João Antônio sorriu vendo o cão sonhar enquanto chupava a bomba do chimarrão matinal.
Tomado o amargo, João Antônio fechou a portinhola do fogão para manter o fogo aceso por mais tempo, para facilitar a vida de Maria da Graça, que, ao se levantar, não precise se preocupar com isso. Vestiu o velho pala surrado e saiu. Campeão o acompanhou abanando o rabo. João Antônio iria encerrar a vaca brasina no galpão contíguo à morada para tirar o leite.
Conhecedor dos animais e das coisas da terra, ele sabia exatamente onde procurar a vaca. Estava protegida do vento e do frio no capão próximo ao rancho. Tocou a vaca mansa para o interior do galpão. Riscou um palito de fósforo para acender o coto de vela que fica dentro de uma lata dependurada numa das paredes, e, com uma corda de embira, amarrou a brasina ao palanque da estrebaria, onde o terneiro a esperava berrando ansioso, um pouco pela fome e outro pouco pela saudade de ver a mãe. Maneou os pés da vaca e trouxe-lhe o bezerro para mamar. Fazia dois dias que havia nascido. Era bem desenvolvido e também brasino. João Antônio apojou a vaca e amarrou o terneiro no palanque junto à cabeça da mãe. Começou a ordenha. O ruído rascante do leite caindo na vasilha era o único som que havia no galpão àquela hora do dia.
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Pouco depois, lá fora, o galo cantava o seu cocoricó esganiçado para a alvorada que anunciava o novo dia.

sexta-feira, 19 de agosto de 2011

O alvorecer


João Antônio sentou-se na beira da cama, procurou com os pés tateantes as alpargatas e passou a mão direita pelos cabelos desgrenhados. Olhou de soslaio para o vulto da mulher que ainda ressonava. Suspirou fundo. Estava preocupado com a gravidez da esposa. O nascimento da criança era esperado para aqueles dias do final do inverno. O ventre da futura mãe estava já bem pronunciado.
Era pouco mais de quatro horas da madrugada e o frio intenso lá fora preparava a geada que prometia ser das grandes. O silêncio era quase completo naquele pequeno quarto escuro. De quando em quando era quebrado pela respiração ofegante de Maria da Graça que dormia profundamente.
João Antônio levantou-se e dirigiu-se à janela para averiguar como estava o tempo. Lá fora o vento minuano assoviava e balançava os galhos secos do velho ipê. O campo brilhava ao luar com a geada em formação. Parecia todo coberto de prata.
“Geadona veia das brabas”, disse resmungando para si mesmo e saiu do quarto esfregando as mãos para esquentar os dedos enrijecidos pelo frio.
No outro cômodo da casa, que eram apenas dois, o pequeno quarto e a cozinha, que também servia como sala e despensa, João começou a preparar as coisas para o novo dia que nascia. Juntou uns gravetos e pôs-se a acender o fogo. Pouco tempo depois, a casa iluminou-se com a chama e o calor do fogo que lutava para espantar o frio que entrava pelas frestas das janelas e das paredes do casebre.
João Antônio olhou pela janela da cozinha e viu o cachorro Campeão que dormira enrolado em si mesmo num nicho debaixo da casa. O homem, com pena do animal, resolveu abrir a porta.
“Bamo, Campeão, se aprochegue”, convidou o dono, que fala mais com os animais que com a própria mulher. O cachorro entrou e dirigiu-se para o seu canto ao lado do fogão.
Lá fora, o vento soprava e o alvorecer branquejava a paisagem invernal.

sexta-feira, 12 de agosto de 2011

Uma resoluçao

Quase todos os dias, João Antônio cata gravetos e grimpas no capão de trás da sede da fazenda Monte Alto para facilitar a vida de Maria da Graça. O rapaz dedica-se totalmente à moça. Faz isso por amor e afeto.
Os dois quase nunca trocam palavras entre si. Apenas alguns olhares furtivos e de soslaio. Uns sorrisos acanhados e sem motivo aparente, o que os outros acham estranho. Seu Juca, o pai de Maria da Graça, acha esse comportamento dos namorados muito engraçado. “Esses dois até parece que são é meio fraco das ideias!”, diz o velho achando graça, pois sabe que é coisa de gente moça esse negócio de andar com a cabeça nas nuvens.
Quanto ao rapaz, seu Juca tem uma teoria formada. “São essas lendas e causos que o tio Guinas vive contando pra esse guri. Essas coisas de fantasia e de invenção que o velho inventa... Fica é colocando caraminholas na cabeça do guri”.
Já a mãe de Maria da Graça, dona Anunciata, diz que “os dois tão ‘percisando’ é de tomar jeito”.
Mas dona Anunciata gosta muito de João Antônio, mesmo achando também que ele é “meio avoado”. No entanto, nem o pai nem a mãe sabem o que se passa na cabeça da filha e do pretendente a genro, mas desconfiam que andam de namorico e que a filha tem muito apresso pelo rapaz.
A verdade é que João Antônio dificilmente conversa com alguém. Fala muito consigo mesmo. Algumas vezes, conversa com a cachorra Coleira, que empina as orelhas e mexe a cabeça de um lado para outro como quem presta atenção redobrada ao interlocutor que lhe dirige as palavras. Na verdade essas palavras proferidas pelo rapaz são direcionadas para si mesmo. Ele usa o diálogo com a cadela para exteriorizar os pensamentos e para dar ordem às ideias que se acumulam em sua cabeça.
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Nesse momento João Antônio, que está em frente ao espelho, tomou uma resolução. E enchendo-se de coragem, pensou alto, “Vou lá falar com ela... não posso mais ficar nessa lenga-lenga!”.
E foi.

sexta-feira, 5 de agosto de 2011

Maria da Graça


Maria da Graça está na cozinha preparando a mesa para o café da manhã dos patrões, o cel. Osório e sua família. No fogão à lenha, o fogo está aceso e a chaleira começa a chiar. Enquanto espera a água ferver, prepara a cuia para o mate. Maria da Graça gosta de matear logo nas primeiras horas do dia. Adquiriu o hábito com o seu pai, o seu Juca.
A moça gosta dessa hora da manhã, pois é quando fica só no casarão esperando os patrões acordarem e seu pai, sua mãe ou (quem sabe?) João Antônio voltarem da ordenha com o leite fresco. Vez por outra é o próprio João Antônio quem traz o leite para ela. Mas os dois não trocam muitas palavras entre si. Só alguns olhares acanhados de quando em quando.
Por causa do barulho que faz, Maria da Graça fecha a porta da cozinha que dá acesso aos outros aposentos do casarão e liga o rádio. Nesta hora do dia, a programação da rádio local é de músicas campeiras. Vez por outra, o locutor anuncia a próxima canção, fala dos produtos dos anunciantes, diz a hora certa e fala do tempo com aquela voz grave e pausada de radialista de interior.
“Hora certa: em Santa Cruz da Encruzilhada, seis horas e dezenove minutos. O céu azul promete mais um dia quente na região serrana. No momento: dezesseis graus. Na Rádio Encruzilhada, mais um sucesso d’Os Bertussi, “Oh, de casa!”
A cozinha enche-se ao som dos primeiros acordes da moda. Maria da Graça acompanha a música com sua voz desafinada e sem saber direito os versos da canção. Só o refrão ela canta com mais certeza. Acompanha a moda por instinto, sem se importar se está cantando certo. Mas canta mesmo assim. Gosta de música. Depois que o coronel Osório adquiriu o rádio, não o desliga nunca. Deixa-o ligado praticamente o dia inteiro. Fica sabendo de tudo através da programação. Das novidades, das notícias da região, das festas e até mesmo da política local, mas não compreende muito bem essas coisas todas. Gosta mesmo é de ouvir as músicas e cantar junto aquelas letras que também nem sabe direito o que significam.
“Oh, de casa!... Oh, de casa!...”