sexta-feira, 29 de julho de 2011

O homem do espelho

João Antônio está em frente ao espelho. A imagem que vê é a de um homem sem perspectiva. A imagem de um homem sem posses. Um homem sem uma certeza de futuro. Um homem sem nada.
A barba de uma semana que sombreia seu rosto o faz parecer mais velho do que verdadeiramente é. A imagem que está a sua frente não é a que gostaria de ver. Ou ainda, não é a imagem que gostaria que os outros o vissem, principalmente Maria da Graça.
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Ali está João Antônio, despido de tudo o que há de orgulho ou pretensão. Não há sinal de arrogância ou cobiça nesse ser que está vendo a si mesmo, puro como se tivesse nascido nesse mesmo instante. Ali está um homem imaculado, sem rancores ou raivas. Um homem sem pensamentos impuros ou impróprios. Não há um julgamento sequer neste homem que aqui está, na frente deste velho espelho que já serviu de confessor e amigo para muita gente desses confins do planalto serrano, despido de tudo o que de há de ruim ou pecaminoso, que transpasse a sua condição de ser humano.
É como se João Antônio fosse um homem despido de humanidade. Ou em palavras mais justas e exatas, despido de toda a Maldade mundana e humana, pois tudo o que pertence ao homem, ao ser humano, está repleto de maldade e pleno de pecado.
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O homem que está agora em frente ao espelho é um homem simples. Ignorante das coisas supérfluas. Não é capaz de um pensamento mais ousado. Um pensamento que alcance algo impensado ou complexo.
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O homem que se vê a si mesmo não sabe das coisas impalpáveis. No entanto, esse homem rude e simples que aqui está, parado como uma pedra, observando a imagem que o espelho lhe apresenta, tem certeza de uma coisa que poucos na vida possuem. A certeza de amar uma mulher. Ama-a sem qualquer suspeita de interesse material ou ambição pretensiosa. Ama-a descomprometido. Apenas com a certeza de amá-la e de dedicar a vida e o futuro a ela. Este homem do espelho ama uma mulher. Simplesmente.

sexta-feira, 22 de julho de 2011

João Antônio

A última vaca foi ordenhada e João Antônio vai tomar o seu mate ao lado do seu Juca, pai de Maria da Graça e capataz da fazenda Monte Alto. Senta-se no próprio banquinho da ordenha e acende um crioulo. A cadela Coleira permanece deitada tomando os primeiros raios do sol que, aos poucos, rompem a neblina.
João Antônio olha para o nascente e fica a contemplar a paisagem, mas o que vê mesmo é a sua própria vida. Pensa em tirar Maria da Graça dali e ir morar com ela em algum rancho. Mas esse pensamento o irrita. Não existe tal rancho, pelo menos não que seja dele. Apenas aquele velho casebre abandonado nos fundos da invernada grande que servia de abrigo ao coronel Osório nas suas andanças pelos campos.
Solta uma baforada e as ideias evaporam-se no ar com a fumaça do cigarro. Abaixa a cabeça e olha para si. Suas roupas estão que é um trapo. A calça, toda remendada, mais parece uma colcha de retalhos. Os bicos de ambas as botas estão todos arrebentados. A camisa encardida só presta para a labuta diária. Não é roupa, é apenas um pano velho que o cobre. Passa a mão direita no queixo e sente os pelos da barba de uma semana. O rascar do toque lhe dá uma sensação de desamparo e de relaxamento. “Tenho é que me endireitar! Tomar um banho e raspar esta barba...”.
Vira o rosto para a casa do patrão. A fumaça que sai pela chaminé é a prova de que Maria da Graça está na ativa. Imagina-se entrando casa à dentro e aproximando-se da amada para tomá-la em seus braços e arrancá-la dali. Nesse momento, um bem-te-vi o alerta de que o viu em seu devaneio. “Bem-te-vi... bem-te-vi...”
João Antônio volta à realidade. Balança a cabeça de um lado a outro, cospe no chão e joga o crioulo no barro umedecido da mangueira. Seu Juca, que permanecia calado bombeando a cuia, olha para o pretendente a genro e pensa em voz alta. “Até parece que anda meio avoado das ideia esse rapaz.”
João Antônio nem se dá conta das palavras do velho. Permanece absorto, olhando o nada. Lá fora, as vacas pastam calmosas. “É... o dia vai ser bom”, fala alto, mais para si mesmo do que ao outro.
Precisa levar o leite para a casa dos patrões, e essa é uma oportunidade de ver Maria da Graça e, quem sabe, trocar algumas palavras com ela. A ansiedade o põe em nervos. Todavia lembra-se de como está vestido. Isso o deixa envergonhado e ferido em seu orgulho. Mas sabe, no entanto, que Maria da Graça é da mesma classe social que a sua, mas nem por isso se livra do orgulho que tem de si.
Vai para o seu aposento e tenta dar uma arrumada nos cabelos desgrenhados. Tira a camisa esfarrapada e troca por outra, a domingueira e que só a usa nos domingos ou em ocasiões especiais. Ver Maria da Graça é uma ocasião especial. E João Antônio quer se mostrar bem para ela.

sexta-feira, 15 de julho de 2011

Os guapequinhas

Os guapequinhas estavam mais pra lá do que pra cá. Quando João Antônio começou a tratá-los com o vermífugo, logo eles deram de expelir os vermes. Eram umas coisas compridas e finas. Mais pareciam umas minhocas.
Um dos cinco cachorrinhos infelizmente não agüentou e acabou morrendo. Estava muito debilitado e, por ser o menor da ninhada, os outros não deixavam que ele se chegasse para mamar nas tetas da mãe.
Mas João Antônio estava mesmo preocupado era com o guapevinha mais parecido com Coleira, o que ele decidiu dar o nome de Campeão. O cachorrinho estava também muito debilitado. Se sobrevivesse, seria por milagre.
A bem da verdade, João Antônio pensou que nenhum deles pudesse sobreviver. Mas à medida que os dias iam passando, os quatro guapecas sobreviventes se mostravam cada vez mais fortes.
Por isso é que Maria da Graça teve que dobrar a comida dos cachorros. A porção de polenta sem sal que fazia já não era suficiente. A partir daquele dia, a polenta passou a ser feita num panelão que era usado na cozinha de chão para preparar as morcilhas, linguiças, sabão e outras coisas de fazenda.
Não demorou muito, os filhotes começaram a perambular pelo quintal em frente de casa. Corriam atrás das galinhas e dos marrecos. As ovelhas batiam as patas da frente com força no chão e avançavam sobre os filhotes, que de medo e falta de experiência das lidas campeiras, corriam esganiçando desesperadamente.
Era bonito de se ver. Aquela brincadeira de correr atrás das ovelhas e de outros animais de criação, na verdade, era como uma espécie de exercício para as fainas futuras. “Esse Campeão vai ser bom de lida!”, dizia João Antônio, “Olhe só o jeito que ele se agacha pra dar o bote!”
Quando era tempo de lidar com o gado, os cachorrinhos observavam, do cercado da sede, a mãe e os outros cachorros da fazenda arrebanhando a tropa, pois não se atreviam a ultrapassar esse limite de segurança.
Mas logo, logo será a vez dos filhotes de lidar e campear o gado pelos campos e canhadas.

sexta-feira, 8 de julho de 2011

Campeão

A ninhada, por pouco, não vinga. Se não fosse por Coleira, todos os guaipequinhas tinham morrido. Coleira foi tão zelosa no cuidado dos filhotes, que os escondeu por quase duas semanas sem que ninguém pudesse descobrir aonde foi que ela havia dado à luz àquela ninhada toda. Por sorte, Coleira, quando percebeu que seus filhotes estavam em maus lençóis, pediu logo ajuda ao dono. “Até parece gente esse bicho”, dizia o dono.
João Antônio lidou para saber onde era o esconderijo da cadela, mas não teve jeito, pois não se ouvia ganidos nem sinais dos guapequinhas e os serviços na fazenda eram demasiados para poder ficar de folga assim no mais à procura de cachorros recém-nascidos.
Eram cinco filhotes. Todos parecidos e de pelagem tigrada. Exceto um, que trazia a pelagem da mãe. O fato de quatro cachorros serem do mesmo tipo de pelo, dava a certeza de quem era o pai, um cachorro graúdo da fazenda vizinha. Esse cão também trazia a pelagem mosqueada, de um marrom-acinzentado. Parecido com um cão pastor.
Já a mãe, Coleira, recebeu esse nome por causa da pelagem branca que envolve o pescoço, tomando a forma de uma gargalheira. Essa coleira se estende à barriga e às quatro patas. O restante do corpo tem a pelagem amarelo-ovo. Os pelos são duros e curtos, assim como os do cão da fazenda vizinha. Coleira é de médio porte. A raça, indefinida, com laivos de pointer, porém menor, misturado com algum terrier desenxabido.
Quando Coleira mostrou a João Antônio o esconderijo da ninhada, os filhotinhos estavam com suas vidas por um triz. “Se eu demorasse mais um dia pra achar a toca, acho que nenhum sobrevivia...”, disse o homem para a sua mulher, Maria da Graça.
Desde o instante em que João Antônio salvou os guapequinhas, já escolheu um como seu predileto. E era justamente aquele parecido com a Coleira. “Acho que vou querer ficar com esse daqui. Gostei mais desse guapevinha por causa que ele é o mais acabrunhado de todos.” O homem ficou um momento calado, pensando, e disse assim como quem fala pra si próprio: “Se ele sobreviver, o nome dele vai ser Campeão.”

sexta-feira, 1 de julho de 2011

Coleira

A cadela Coleira está prenhe. A pança, enorme. “Acho que a Coleira vai dar cria... De hoje não passa.” – sentenciou João Antônio pra mulher na hora do café. E continuou: “A lua tá pra mudar e ela anda meio estranha, se escondendo, se entocando por aí...” Maria da Graça apenas escutava enquanto punha lenha no fogão. “Quando eu tava tirando leite, ela começou andar de um lado pro outro, que nem uma tonta...”.
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Na hora da ordenha, a cachorra Coleira mostrou-se estonteada. Andava pra lá e pra cá sem se decidir onde ficar. Percorria o quintal detrás da casa. Andava pros lados do galinheiro, voltava ao quintal, descia pros lados do chiqueiro, vinha de volta ao galinheiro, cruzava a cerca em direção ao galpão, transpunha as estrebarias, retrocedia ao quintal, passava pela frente da casa, farejava, cheirava, procurava um lugar, um esconderijo, uma alcova, uma cova, um lugar para se entocar, uma toca.
Pouco antes do almoço, João Antônio percebeu que Coleira sumira. “Onde será que se meteu essa cachorra desgramada? Agora vai ter essa cachorrada sabe-se lá aonde...”.
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Passaram-se dias e Coleira só aparecia para mal e mal comer as sobras das refeições dos donos e a polenta sem sal feita para os cães e já se escafedia novamente. Coleira ia secando mais e mais a cada dia. Estava que era só carne e osso a coitada.
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Certo dia, Coleira olhou o dono e deu de latir e abanar o rabo e rodopiar ameaçando sair correndo. “O que será que essa cachorra quer? Deve de ter alguma coisa errada com os guaipecas...” A cadela queria que ele a seguisse. “Vamos...”. Coleira dirigiu-se aos fundos do galpão e penetrou numa fresta que dava acesso à parte debaixo da construção. Ali era o ninho. Ali estava a ninhada.
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João Antônio meteu a cara pela fresta. Ouviu uns ganidos surdos. Quando seus olhos se acostumaram com o escuro da furna, avistou dois olhinhos brilhando como farois. Eram os olhos de Coleira. Os filhotes já se locomoviam, mas não eram capazes de subir o degrau da entrada da toca. “E agora, como é que vamos tirar esses bichos daí de baixo?”.
João Antônio teve que remover alguns tijolos para poder retirar os filhotes do buraco. Estavam muito debilitados, cheios de vermes e empestados de pulgas. Levou-os para um lugar mais arejado. Por sorte, havia vermicida na fazenda. Deu aos guaipequinhas, que, não demorando muito, começaram a expelir os vermes.
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Depois do serviço feito, João Antônio comentou, todo orgulhoso, com Maria da Graça, “Esses bichos só faltam falar, se não fosse pela Coleira, acho que os guaipequinhas estariam todos mortos em pouco tempo”.