sexta-feira, 30 de dezembro de 2011

A mudança da lua

Maria da Graça sentiu os primeiros sintomas do parto no início daquela manhã de domingo. Gritou pelo marido, mas não obteve resposta. João Antônio, como de costume, saíra cedo para o campo logo após a ordenha e de ter tratado as galinhas.
Era o fim do inverno e os dias estavam cada vez mais longos. Mas o frio ainda insistia em continuar. As primeiras flores do velho ipê só esperavam os dias gelados irem embora de vez para apontar e anunciar a primavera que não tardaria em chegar.
As novas folhas das outras árvores do quintal que iam despontando queimaram-se todas pelas geadas dos últimos dias. Outros brotos surgiam e, logo, logo, cobririam de verde os galhos secos e cinzentos. Todavia outra geada vinha e queimava tudo novamente. Mas os dias, cada vez mais quentes, eram sucedidos pelas noites frias e geladas. Era a primavera que principiava anunciando toda a sua força.
João Antônio, que nos últimos dias andava preocupado com o estado da mulher, voltou mais cedo do campo naquele domingo. Fora apenas dar uma olhada em algumas vacas do coronel Osório que estavam para dar cria. Lá pelas dez e meia da manhã, voltou.
Ao entrar no rancho, encontrou a mulher estendida na cama, abanando-se toda. As dores do ventre faziam-na contorcer o corpo. O líquido da bolsa que estourara escorria-lhe por entre as pernas. “É, a coisa é pra hoje mesmo...”, pensou João Antônio tentando não perder a calma.
“A lua mudou e a brasina velha também já criou...”, comparou a gravidez da mulher com a prenhez das vacas. Nesse momento, João Antônio, que ainda tentava manter a calma, agitou-se de tal forma que não atinava o que fazer. A mulher, à sua frente, contorcendo-se de dor, gritava “Acuda, homem, por amor de Deus!”.

sexta-feira, 16 de dezembro de 2011

O dia de domingo


João Antônio levantou-se. No ato, sentiu uma fisgada na coluna. Com ambas as mãos postas em suas costas, ensaiou um alongamento meio que por impulso. “Também, dormi nesse cepo mais duro que trote de petiço manco, bem feito!” – esconjurou-se por ter passado parte da noite na cozinha. Caminhou na direção do quarto. A casa está ainda escura, pois o sol ainda tardaria a apontar no horizonte. Aproximou-se da porta do quarto com receio. Um medo de se deparar com uma nova vida ali e de ser pai o afligiu. Com a chegada da criança, as responsabilidades aumentam consideravelmente.
Espiou o interior do aposento e fez meia-volta. Reforçou o fogo, acrescentando alguns pedaços de lenha. Encheu a chaleira de água e a pôs para esquentar. Em seguida, fechou a portinhola e saiu. Lá fora, a neblina começava a se dissipar e o domingo prometia um dia bonito de céu azul. Uma brisa gelada soprava insistentemente. Campeão o aguardava do lado de fora. “Buenas, amigo veio, dormiu bem? Pois eu varei a noite...” – não perdia nunca essa mania de falar com cão e com outros animais. Ao terminar de falar, bocejou, soltando um grito gutural – “Êta, sono veio dos infernos!” – e dirigiu-se ao galpão contíguo a casa.
Como atrasou um pouco a ordenha, a vaca brasina já o aguardava na entrada do galpão e, volta e meia, mugia impacientemente. “Calma, Brasina veia! Para lá que já te tiro o leite”. Abriu a porteira e a vaca entrou com seu passo bovino e preguiçoso. O bezerro berrava obstinadamente. “Encosta!” – dizia João para que a vaca se posicionasse no lugar habitual da ordenha ao lado da estrebaria aonde dormira o vitelo. João Antônio abriu o portão da estrebaria para que o bezerro mamasse um pouco. Apojou e depois amarrou o boizinho próximo à cabeça da mãe, que mugia como se dissesse “Vem cá, meu filho!” e foi até o rancho passar o café. “Hoje vou tomar o camargo da Brasina.”
Alguns minutos depois, estava de volta ao galpão, com a chocolateira e outros petrechos. Ordenhou e no final, bebeu o camargo, soltando, e seguida, a vaca com sua cria no potreiro. Tratou das galinhas e foi buscar água para os serviços caseiros no córrego aos fundos do rancho, distante apenas alguns metros. De volta a casa, preparou tudo como de costume e saiu pro campo. O domingo prometia novidades para aquele cafundó e João Antônio parou por um instante em frente à casa e olhou para trás, fechando o semblante – “Acho que de hoje não passa” – e continuou o seu caminho.

sexta-feira, 9 de dezembro de 2011

Uma pergunta


No forro da casa, o gambá move-se de um lado a outro causando um barulho surdo. “Tenho de dá um jeito nesse desgracido” – pensou João Antônio enquanto reforça o fogo com uns pedaços de lenha seca. Depois, sentou-se no cepo ao canto da cozinha e fecha os olhos. Está visivelmente cansado pela noite mal dormida. Maria da Graça também dormiu um sono agitado. “A coisa é capaz de ser pra hoje...” – refletiu. E enquanto o pensamento o ia levando pelos meandros da memória, pelas vias das lembranças de coisas que aconteceram nos últimos dias, cochilou.
Súbito acordou, meio que assustado. Ficou alguns instantes com um ar palerma. De repente, lembrou-se do feijão e do leite que havia posto sobre a chapa. Por pouco o leite não derramou. Estava já borbulhando nas bordas da velha vasilha amassada pelo uso e pelo tempo. Verteu-o numa caneca. O feijão, comeu ali mesmo na panela, arranhando com a colher o fundo do recipiente. O calor do alimento o deixou reconfortado. “É bom ter algo quente no estômago” – pensou – “eu tava era com fome”. Bebeu em seguida a caneca do leite já morno.
Dentro de pouco tempo, seu corpo cambou para o lado da parede. Fechou os olhos e adormeceu novamente. Pouco depois, acordou com o canto esganiçado do galo anunciando a aurora que não tardará a chegar. João Antônio abriu os olhos e, a princípio, não compreendeu nada. Uma sensação de estranhamento o dominou. Está habituado a acordar sempre no mesmo quarto, com as mesmas paredes, a mesma cama, a mesma mulher a ressonar a seu lado.
Olhou desconfiado para o lado e não viu nada disso. O que viu foi uma caixa de lenha, o fogão. Recobrou a consciência. Lembrou-se que acabou dormitando na cozinha. Esfregou os olhos, bocejou, ajeitou-se no cepo e respirou fundo. O ar renovou-lhe o ânimo e o discernimento das coisas. Permaneceu sentado mais alguns instantes. De chofre veio-lhe à memória a lembrança da mulher. “Será que já nasceu?”, perguntou-se em silêncio.

sexta-feira, 2 de dezembro de 2011

Uma distração


João Antônio sentiu um calafrio percorrer-lhe o corpo. Esfregou as mãos uma na outra para espantar o frio e depois, como se desse um abraço a si próprio, esfregou os braços. “Tá fria!”, murmurou. Dirigiu-se para a cozinha. Sentia fome. A ansiedade roubou-lhe o sono causando-lhe o apetite. O interior da casa estava escuro. Somente um ou outro raio da luz do luar penetrava pelas frinchas das paredes e das janelas.
Abriu a veneziana da janela da cozinha para que a lua iluminasse o interior da casa com sua luz diáfana. Procurou, naquele lusco-fusco, o pedaço de pão de milho que restara do café, mas a mulher já o havia comido pouco antes de se deitar. Restou-lhe beber um copo de leite que estava, juntamente com a panela com o resto do feijão ressequido, sobre a chapa do fogão, frio como aquela madrugada.
Suas mãos tremiam. Não sabia se por causa do frio ou do nervosismo. Mal tem dinheiro para a comida dele e da mulher e, agora, mais uma boca para alimentar e um corpo para vestir. Por sorte, sempre há algum animal para se caçar para matar a fome. João é um bom caçador, mas o coronel Osório proibiu a caça em suas terras. “Ai daquele que eu pegar caçando em minhas terras!”, disse um dia o coronel. Vez por outra João embrenha-se no mato a procura de alguma caça: um tatu, uma perdiz, um veado ou uma lebre.
Acendeu o lampião. Abriu a portinhola do fogão e ajeitou uns gravetos e um pequeno pedaço de grimpa dentro do fogão. Riscou um fósforo e a chama do pequeno palito iluminou-lhe a mão e a cara. Assoprou de modo a não apagar o fogo. Com o sopro, uma nuvem de cinzas subiu, engasgando-o. Tossiu. Permaneceu calado a ouvir o silêncio e os estalidos do fogo queimando as grimpas para não incomodar a mulher, que solta, de quando em vez, uns gemidos do aposento contíguo. Logo, o silêncio reina absoluto.
A flama aqueceu-lhe o rosto e as mãos. Por pouco não se deixou queimar. Distraiu-se com os ruídos da mulher e do silêncio da noite.