sexta-feira, 28 de outubro de 2011

Chamamento


João Antônio descalça as velhas botas e entra com os pés descalços. A casa não difere muito da sua, apenas mais envelhecida. Dependuradas na parede, somente umas velhas esporas de prata, um arreador com cabo esculpido em madeira fazendo alusão a uma cabeça equina, um chapéu de aba larga, barbicacho, uma imagem da crucificação de Cristo e mais alguns petrechos espalhados pelos pregos.
Tio Guinas estava visivelmente animado com a visita inesperada do afilhado, apesar de já ter uma ideia a respeito do motivo do aparecimento. “Me diga uma cousa, meu filho, já nasceu a criança?, perguntou assim logo de prima, sem rodeios, enquanto punha no fogo a chaleira cheia d’água para preparar o mate.
“Inda não...”, João Antônio falou depois de alguns instantes, com ar de quem está querendo dizer algo, mas não toma coragem.
O silêncio volta a reinar por um tempo no interior do casebre. Apenas o bate-bate que o velho faz nos armários à procura dos ingredientes para preparar o mate amargo.
Súbito João Antônio enche-se de coragem e começa a falar, mesmo que titubeante.
 “Pois é isso mesmo o que me traz aqui... eu... mais a... mulher... queria que o padrinho... desse um ajutório lá em casa... pra a mulher velha... poder ter a criança em paz...
“Mas é pra hoje a encrenca?”
“Tá querendo...”
“Mas bah! Então, assim que o guri do meu compadre chegar, que tá vindo lá das bandas de Lages, eu mando ele de já hoje mesmo lá pra fazenda do coronel Osório... É que eu ia pra lá hoje pra fazer uma lida... mas daí eu mando o guri...”
“Mas não precisa de se incomodar, padrinho...”
João Antônio permanece cabisbaixo como se sua esperança o estivesse abandonado.
“Mas não se desacorçoe homem, assim que o guri chegar, eu me debando lá pra tua casa. Mais tardar amanhã cedo, na barra do dia... Tô louco pra ver a cara do bacuri!”

sexta-feira, 21 de outubro de 2011

No vão da porta


Tio Guinas é homem do campo e sabedor das coisas. Conhece as coisas do tempo e da terra. Nunca frequentou escola. Sabe ler as estrelas, a lua, o sol, o vento, o comportamento dos animais e das pessoas. Tudo o que sabe, aprendeu com a vida, reparando nela.
O velho coronel Francisco, de quem muitos suspeitam que seja filho, foi quem o ensinou algumas letras, mas mal e mal escreve o próprio nome, pois naqueles pagos, o homem do campo não carece de palavras escritas. A palavra oral é a que vale. Um homem de palavra é um homem digno e honrado. Basta não cumprir com o que foi dito para ser desrespeitado socialmente. O velho Aguinaldo Silva sempre foi homem de palavra. Daí o respeito e a admiração de todos.
Apesar da idade avançada, vez por outra ainda monta o seu tordilho, sempre ao raiar do dia, e sai a trote pelas coxilhas e pagos e dirige-se à fazenda Monte Alto, onde é sempre bem-vindo. É uma espécie de conselheiro do coronel Osório, assim como o foi do coronel Francisco.
Apesar de tio Guinas ser padrinho de batismo de João Antônio, ninguém sabe ao certo se existe algum parentesco entre os dois. Faz de tudo e mais um pouco para ajudar o afilhado, mantendo sempre os olhos atentos sobre ele. O que tiver ao seu alcance, tio Guinas faz. E de bom coração.
Ao ver o velho, para no vão da porta, o cachorro Campeão dispara. Tio Guinas permanece pensativo, “Ué... o que será que esses dois tão fazendo pr’essas bandas uma hora dessas? Será que o bacuri nasceu?”. O cão faz festa ao chegar ao amigo. Lambe-lhe as mãos, enrodilha-se todo nas pernas do velho e pula e late e esganiça de felicidade. O velho ri e brinca com o cão, “Êita, cusco velho caborteiro!” -
“Buenas, padrinho!” – grita João enquanto fecha a cancela do portão.
“Buenas! E a afilhada Maria, como vai indo?”
“Boa... E por aqui, como vão as coisas”
 “Por aqui, tudo na Santa Paz, graças a Deus.” – tio Guinas estende a mão e João Antônio pede a bênção.
“Deus le abençoe meu filho!”
E ficam os dois parados no vão da porta num silêncio típico de sítio, cada um olhando para os seus próprios pensamentos e pés.
“Mas se aprochegue, homem” – convida o velho.

sexta-feira, 14 de outubro de 2011

Causos e rumores

Tio Guinas gosta de ficar numa roda de chimarrão com os mais moços e contar os seus causos e lendas da sua vida e da dos outros. Acrescenta sempre algo a mais nas suas narrativas, pois quem conta um conto aumenta um ponto, como se diz por estas bandas. Os ouvintes ouvem com atenção redobrada as histórias dos tempos de outrora. O velho fala pausadamente e com o palavreado típico da região serrana.
Está já com uns setenta e poucos anos, mas a memória ainda guarda intactas as lembranças da infância e da adolescência. Sua mãe era uma índia velha que viveu nas terras do coronel Francisco Fragoso, pai de Osório. Dizem alguns até que tio Guinas era filho legítimo do coronel Francisco. Outros apontam semelhanças entre os dois, Osório e ele. “Os olhos de guri arteiro são iguais aos do coronel”. No entanto, nada é comprovado. Naquele tempo ainda não existiam testes de DNA ou coisas parecidas. A verdade é que Aguinaldo da Silva, o tio Guinas, viveu a sua vida inteira nas terras do coronel Francisco e vive, ainda hoje, sob a proteção do coronel Osório, seu provável irmão.
Tio Guinas faz parte da história da fazenda Monte Alto. Está para ela assim como as taipas que singram as coxilhas e as araucárias que cobrem os campos e invernadas. A querência não é a mesma sem o tio Guinas. Os filhos do coronel Osório, quando chegam à fazenda para passarem as férias, a primeira coisa que fazem é correr para o galpão para ouvir-lhe os causos e anedotas. Adoram o tio Guinas como se este fosse um membro da família. Não sabem eles dos rumores que rondam sobre a suspeita da sua paternidade e do parentesco do velho com o avô dos piás. O coronel Osório não lhes fala nada a respeito, nenhuma só palavra. Decerto temeroso por ter que dividir, entre mais um, a herança dos filhos.

sexta-feira, 7 de outubro de 2011

Tio Guinas


Depois de pouco mais de meia hora de caminhada, avistou ao longe o rancho do tio Guinas. Um fio de fumaça saía pela chaminé do casebre. Sinal de que há gente na morada. A casa, vista assim de longe, parece incorporada à paisagem a sua volta. Já tomou a feição do mato e das árvores em derredor. A madeira, que já sofreu a ação e os efeitos da pátina do tempo, mais parece um tronco de uma grande árvore envelhecida. Assim como a morada de João Antônio, o rancho do tio Guinas também está virado numa tapera. Até dá pena.
O velho vive só naquele ermo. Sua casinhola também é desprovida de luxos, luz elétrica, água encanada, esgoto. Apesar de estarmos em meados dos anos setenta, tio Guinas, do mesmo modo que João Antônio e Maira da Graça, ainda vive como se fosse o início do século XX.
¨
João Antônio e Campeão aproximam-se do sítio. Um cão, que tio Guinas mantém acorrentado por detrás do rancho, latiu insistentemente. Instantes depois, a figura de um velho despontou na soleira da porta. Era o tio Guinas.
Tio Guinas é um caboclo velho trigueiro com sangue de índio botocudo. Quando mais moço, era famoso por suas façanhas nas domas e lidas de gado e de galpão. Não havia potro xucro que tio Guinas não desenganasse. Não temia os perigos da doma. Quando era tempo de vacinação ou marcação do gado, sempre escolhia algum touro ou boi brabo para montar e exibir-se para os outros, que gritavam e assoviavam empolgados pelo feito:
“Mas, ah, quera veio!”, gritavam.
Tio guinas também gosta de contar uns causos. Não perde tempo nem vez para falar das suas andanças e aventuras. Não pode ver uma roda de chimarrão que já se aprochega, assim meio que de revesguelho, como quem não quer nada, aguarda uma brecha ou que alguém lhe passe a palavra, e já vai falando, assim vagarosamente, num jeito sestroso, fazendo com que todos fiquem atentos, prestando atenção. Tio Guinas é como um grande artista. E esse é o seu palco. Esse é o seu grande número.