segunda-feira, 30 de novembro de 2009

Trecho de Deserto e Solidão - romance

O trecho a seguir faz parte do romance regional que estou escrevendo. Pretendo descrever a região serrana de Santa Catarina e retratar a vida dura da gente pobre do lugar:


 

Foi logo depois da ordenha que João Antônio e sua família puseram-se a caminho da estância. Tio Guinas ficou tomando conta do rancho.

    – Façam u'a boa viage', meus fio!

    – A bença padrinho.

    – Deus le abençoe!


 

    O boi osco pôs-se a andar com seu passo lerdo e pachorrento. O carro range suas rodas num canto agoniante e choroso. Maria da Graça, sentada nas taboas do veículo, segura a filha em seus braços. Esta dorme embalada aos solavancos e à serenata que o carro produz. "Êra boi!", gritou João Antônio naqueles ermos. Seu grito perdeu-se pelos campos a fora e subiu a encosta ecoando ao infinito a última sílaba: oi... oi... oi... Uma perdiz voou de uma macega próxima. O trepido do voo da ave nem sequer assustou o boi que seguia lentamente o seu caminho. Do lado do morro, o canto das aves enche o vazio numa orquestração louca. Pintassilgos, curicacas, gaviões, papagaios, tirivas, tico-ticos, pica-paus, joões-de-barro, grimpeiros, gralhas-azuis, chopins. Cigarras gemem. Insetos das mais variadas espécies celebram o dia com seus guinchos estridentes. Ao longe, para o lado do campo aberto, ouve-se o canto das seriemas com sua melodia maluca. Alguns quero-queros gritam próximos.

    João Antônio guia o boi de cima do carro vestido com sua roupa domingueira. Uma camisa de linho branca já um pouco surrada pelo tempo e pelo uso; um lenço cor de vinho fazendo às vezes de gravata; botas pretas sanfonadas; uma bombacha bege.

Vão em silêncio pela picada. Mais uma hora até chegar ao antigo corredor das tropas. A estrada, muito utilizada nos tempos dos tropeiros, está agora mal conservada. Atoleiros e vassouras enormes impedem em muitos trechos a passagem de veículos maiores. Um carro com dois bois carreiros teria muita dificuldade em transpor esses trechos. Um automóvel então, nem se fala... Mas estes são ainda tão poucos na região que nem mesmo o coronel Osório possui um.

Chegaram ao antigo corredor das tropas. Dali, mais umas duas horas de viagem até a vila da Chapada do Cruzeiro. Querem chegar a tempo para a missa do Dia de Finados. Os moradores da região vêm para a vila passear e aproveitar o dia para visitar os seus mortos. O sol das dez horas esquenta, e se não fosse o vento frio de princípios de novembro, o calor seria insuportável naquele descampado. À esquerda, a paisagem perde-se pelas coxilhas a fora. O verde-claro dos campos contrasta-se com o escuro dos capões e matas aqui e ali. "Mais pro fim do dia vem trovoada por aí...", pensa João Antônio olhando para o horizonte à sua esquerda.

sexta-feira, 27 de novembro de 2009

A Ponte Japonesa no Jardim Giverny, de Claude Monet (1918-1924)

O soneto a seguir foi composto por mim para a obra de Claude Monet. Procurei ressaltar no poema a dedicação com que Monet partilhava com a luz, com o sol, com as sombras, com as cores, com a natureza enfim, pois acredito serem essas as inspirações que lhe davam um sentido mais real para a sua vida (daí as palavras "brida" e "vida" fazendo rima uma com a outra). O termo "canto" faz alusão ao trabalho dedicado do artista no decorrer de sua vida. O resto, acho que o próprio soneto terá condições de mostrar.


 


 

À luz do sol hei de cantar meu canto,

Que do amor e das flores nasce a vida.

Sombras e luzes na paisagem – o encanto,

Mundo de cores e sabores – brida.


 

Na beleza das cores saltitantes

Prendi o meu olhar. Pedra no frio.

Arranquei d'água o som mais deslizante

Que se faz refletida à luz do rio.


 

Canto de cor, som, luz e sentimento.

E qual será o tom e o dom profundo

Da cor da vida e deste vão momento?


 

Meus olhos ardem como o fogo – vida –

Na fulgência das cores – sol do mundo –,

No canto-cor. E a luz se faz perdida.

quarta-feira, 25 de novembro de 2009

“Orgulho”, o pequeno grande conto de Rubem Fonseca

Dono de um estilo ímpar dentro da Literatura Brasileira, Rubem Fonseca consegue transformar um simples fato corriqueiro em uma arte que nos arrebata e nos faz pensar sobre o que somos, nos nossos defeitos e qualidades, e, no caso do conto a ser estudado, no nosso orgulho.

    O conto "Orgulho", publicado em 1995, no livro "Buraco na Parede", da Companhia das Letras, narra os momentos de aflição da personagem que está numa mesa de cirurgia. Passa-lhe pela cabeça imagens e lembranças de fatos que o marcaram – mulheres, o "ovo de madeira muito liso e macio" com que sua mãe cerzia as meias que ele usara, um relógio muito valioso etc. O personagem, acima de tudo, lembra de ter sido sempre muito orgulhoso.

    A maneira que o autor apresenta a narrativa é extremamente eficaz. Só um grande conhecedor da língua é capaz de alcançar tal eficácia, pois o autor usa e abusa das orações coordenadas aditivas, eliminando, destarte, os pontos finais. E é justamente isso que faz com que o leitor sofra e sinta, junto com a personagem, a falta de ar e a agonia de morte da qual esta sofre.

    Exímio narrador, Rubem Fonseca utilizou-se do mesmo recurso que o escritor português José Saramago utiliza (ou melhor, não utiliza): a pontuação. Ou seja, faz uso apenas de alguns sinais de pontuação – as virgulas e os pontos (sendo que estes últimos aparecem apenas nas últimas linhas da narrativa).

    A narrativa possui uma força poética como poucas, pois trata de analisar o que se encontra nos mais recônditos sentimentos da espécie humana. O amor-próprio exagerado, a autovalorização, a vaidade, a soberba, o orgulho, tudo isso o autor revela no decorrer da narrativa, com extrema capacidade de argúcia. O leitor sente-se arrebatado pela força da narrativa, como se fosse a própria personagem.

O crítico Silviano Santiago escreveu no verso dos Contos Reunidos de Rubem Fonseca, lançado em 1994 pela editora Companhia das Letras: "Num estilo literário que imita as seduções de planta carnívora, os contos de Rubem Fonseca dramatizam com rigor inédito esse tema universal e regional, palpável e escorregadio. O corre-corre do trabalho e as horas de merecido lazer são preenchidos pelos diversos rituais da perversidade e da alegria sádica. No caso dos marginais ao sistema, a luta pela sobrevivência miserável celebra a orgia escatológica de corpos e armas mortíferos".

segunda-feira, 16 de novembro de 2009

The Zorden em CD (3)

No dia 13 de outubro dei início às gravações dos vocais do próximo CD da The Zorden. Assim como nas linhas do baixo, a primeira música que gravei foi Sinais. Foi relativamente fácil gravar a voz nas músicas de minha autoria. Logo no terceiro take, ficava já alguma coisa gravada. Depois, íamos ajeitando aqui e ali. Em algumas vezes era a afinação que ficava um pouco a desejar. Em outras, era a interpretação.

As duas canções que tive mais dificuldade foram Pra te encontrar e Tapera (Ribomba): a primeira por nunca tê-la cantado; a segunda, devido aos intervalos da melodia composta pelo meu irmão.

Levei apenas três dias para gravar a voz nas sete canções em que participo como vocalista principal, com exceção da música do Marcos (Pra te encontrar), que acabei refazendo todo o vocal num quarto dia. Todavia, no geral, a gravação foi bem tranquila.

    O Fael também gravou as suas partes com certa facilidade. Foram duas semanas de gravação, incluindo a minha parte e a dele. A canção Pra te encontrar foi a que deu mais trabalho, pois ainda não tínhamos definido quem iria catá-la no CD: eu ou o Fael (que também fez a sua versão para a música). No fim das contas, acabamos misturando as duas versões, a minha e a dele, e dividindo os vocais.

Quase concomitantemente à gravação das vozes principais, demos início aos vocais secundários...

quinta-feira, 5 de novembro de 2009

São Miguel - Guido Wilmar Sassi (1962)

São Miguel é um romance regional, porém de amplitude universal. O assunto principal do livro é o transporte da madeira de São Miguel - SC, através do rio Uruguai, para a Argentina. As personagens esperam e anseiam pela enchente que torna possível o escoamento da produção madeireira. Além do drama principal, o romancista narra os dramas e os problemas individuais, dando ao autor do romance (ou novela?) um ar de sociólogo e antropólogo.

Guido Wilmar Sassi é um dos maiores escritores catarinenses de todos os tempos. É considerado pela crítica um dos nomes mais importantes da ficção brasileira surgidos na década de 50. Participou, ao lado de Salim Miguel e Eglê Malheiros, do então chamado Grupo Sul, movimento artístico-cultural que tinha em vista a renovação das artes de Santa Catarina. Nascido em Campos Novos, mas criado em Lages, veio a falecer no Rio de Janeiro, em 2002.

Do autor, são os volumes de contos: Piá (1953); Amigo Velho (1957); Vinte Histórias Curtas (em colaboração) (1960); Testemunha do Tempo (1963), entre outros. E os romances: Geração do Deserto (1964) e Calendário da Eternidade (1983), entre outros.